Luiz Sanches
Clemena
permitiu que o tempo deixasse aparente a sua idade. Rugas a ressaltam, cabelos
pintaram-se de branco, às mãos nasceram veias a mostra e nas vestimentas
antigas os rasgos concertados aparecem aos montes. Deitada à cama, sozinha pela
manhã sem dormir por toda a noite. O sol entra sem permissão, batendo-lhe no
rosto, pelo vidro quebrado da janela tão antiga como a dona.
Clemena sofre
de dores na região do coração. Já viveu muito e não teme a esperada passagem
para a outra vida prometida. O sorriso carinhoso que nunca a deixa contorna-lhe
o rosto quando lhe vem as memórias do passado. Lembra-se dos gostosas tempos
idos de menina. Sofrendo na cama, a memória é o artifício de sustento da
alegria que nunca se separou da doce velhinha.
Clemena é
levada pela companheira memória ao tempo de quando era menina e subia em
árvores para pegar frutas, escondida dos pais, claro. Assim, a fruta ficava
muito mais doce do que se alguém pegasse para ela. Na antiga fazenda familiar,
disputava pega-pega com os cinco irmãos mais velhos e três primos. O cachorro
de pêlo listrado tropeçava querendo brincar com os meninos que fugiam um dos
outros na brincadeira do pega-pega. Clemena nova e de pernas curtas não tinha
como correr muito e sempre era pega, ai era ela que deveria pegar um outro,
quase sempre sem sucesso, o que a fazia por vezes sentar e chorar, sendo logo
consolada por um irmão que se deixava pegar. As brincadeiras eram as mais
divertidas: de roda, de pular corda, de bolinhas de gude, sempre expulsa por um
menino que entendia que aquilo não era brinquedo de menina. Tinha também o
adorável e demorado esconde-esconde. Era pura diversão quando algum menino
inventava um esconderijo jamais pensado ou quando alguém era descoberto; tinha
que correr com todas as forças até o "pique". As bonecas eram raras, porém
não as feitas de pano ou de palha, pela prestativa mãe, que sempre se empenhava
em fazer uma boneca mais bonita que a outra. Clemena ficava horas tentando
pegar um passarinho que desse bobeira e pudesse ser engaiolado, para logo ser
solto dentro de casa.
Houve uma vez
que ela e dois irmãos se perderam tentando acorrentar um cavalo diferente que
apareceu na vizinhança. Sem o cavalo e sem o rumo de casa, inventavam
instrumentos mágicos, fabricados de capim, galhos de árvore e sementes que
pudesse trazê-los de volta à casa. Cantarolando e pulando, clamavam o santo preferido
para leva-los em casa. Sem
querer, chegaram na hora que a mãe saia à porta de casa para chama-los para o
almoço, sem desconfiar das peripécias dos meninos. O ensejo virou um segredo da
turma que sonhava todas as manhãs em voltar para desta vez capturar o cavalo. Discutiam
que aquele cavalo era um unicórnio que tem o poder de desaparecer no meio da
mata, por isso não conseguiram o capturar.
Como bons
amigos e irmãos, confidentes e unidos, tinham aquelas longas conversas noite adentro
no mesmo quarto, ou para acalmar a pobre Clemena que tinha medo do barulho das
arvores e do vento e não conseguia dormir. Nas conversas com uma das primas,
Clemena revelava todos os seus profundos segredos e desejos, escondidinhas no
galinheiro para ninguém ouvir.
Comiam doces
dos mais variados sabores e formas. Conheciam bichinhos das mais esquisitas
espécies. Ninguém tinha medo de pegar alguma doença por estar descalço ou se
molhar na chuva. Enfim, Clemena viveu uma infância simples, mas repleta de
aventuras, alegrias e novidades.
Clemena de
volta a vida atual mantendo os olhos fechados, que lhe permitiam viajar a
infância; não possui mais força para abri-los, nem mais os abrirá. O sorriso
vai se fechando e a última lágrima resvalando pelos caminhos repletos de rugas
do rosto. Clemena chora uma última lágrima não pela sua viagem ao além, nem por
se encontrar só neste último instante, mas pela neta que está na sala,
acorrentada ao computador, que jamais terá lembranças tão doces da infância
como a avó. O computador tem joguinhos, mas não tem frutas, nem pula-pula, nem
cavalos, de verdade. Quando a neta crescer usará o computador para trabalhar,
mas já grandinha nunca usará uma corda para pular nem um peão e muito menos
saberá o que é esconde-esconde.