quarta-feira, 3 de abril de 2013

Clemena sonha na cama





Luiz Sanches

Clemena permitiu que o tempo deixasse aparente a sua idade. Rugas a ressaltam, cabelos pintaram-se de branco, às mãos nasceram veias a mostra e nas vestimentas antigas os rasgos concertados aparecem aos montes. Deitada à cama, sozinha pela manhã sem dormir por toda a noite. O sol entra sem permissão, batendo-lhe no rosto, pelo vidro quebrado da janela tão antiga como a dona.
Clemena sofre de dores na região do coração. Já viveu muito e não teme a esperada passagem para a outra vida prometida. O sorriso carinhoso que nunca a deixa contorna-lhe o rosto quando lhe vem as memórias do passado. Lembra-se dos gostosas tempos idos de menina. Sofrendo na cama, a memória é o artifício de sustento da alegria que nunca se separou da doce velhinha.
Clemena é levada pela companheira memória ao tempo de quando era menina e subia em árvores para pegar frutas, escondida dos pais, claro. Assim, a fruta ficava muito mais doce do que se alguém pegasse para ela. Na antiga fazenda familiar, disputava pega-pega com os cinco irmãos mais velhos e três primos. O cachorro de pêlo listrado tropeçava querendo brincar com os meninos que fugiam um dos outros na brincadeira do pega-pega. Clemena nova e de pernas curtas não tinha como correr muito e sempre era pega, ai era ela que deveria pegar um outro, quase sempre sem sucesso, o que a fazia por vezes sentar e chorar, sendo logo consolada por um irmão que se deixava pegar. As brincadeiras eram as mais divertidas: de roda, de pular corda, de bolinhas de gude, sempre expulsa por um menino que entendia que aquilo não era brinquedo de menina. Tinha também o adorável e demorado esconde-esconde. Era pura diversão quando algum menino inventava um esconderijo jamais pensado ou quando alguém era descoberto; tinha que correr com todas as forças até o "pique". As bonecas eram raras, porém não as feitas de pano ou de palha, pela prestativa mãe, que sempre se empenhava em fazer uma boneca mais bonita que a outra. Clemena ficava horas tentando pegar um passarinho que desse bobeira e pudesse ser engaiolado, para logo ser solto dentro de casa.
Houve uma vez que ela e dois irmãos se perderam tentando acorrentar um cavalo diferente que apareceu na vizinhança. Sem o cavalo e sem o rumo de casa, inventavam instrumentos mágicos, fabricados de capim, galhos de árvore e sementes que pudesse trazê-los de volta à casa. Cantarolando e pulando, clamavam o santo preferido para leva-los em casa. Sem querer, chegaram na hora que a mãe saia à porta de casa para chama-los para o almoço, sem desconfiar das peripécias dos meninos. O ensejo virou um segredo da turma que sonhava todas as manhãs em voltar para desta vez capturar o cavalo. Discutiam que aquele cavalo era um unicórnio que tem o poder de desaparecer no meio da mata, por isso não conseguiram o capturar.
Como bons amigos e irmãos, confidentes e unidos, tinham aquelas longas conversas noite adentro no mesmo quarto, ou para acalmar a pobre Clemena que tinha medo do barulho das arvores e do vento e não conseguia dormir. Nas conversas com uma das primas, Clemena revelava todos os seus profundos segredos e desejos, escondidinhas no galinheiro para ninguém ouvir.
Comiam doces dos mais variados sabores e formas. Conheciam bichinhos das mais esquisitas espécies. Ninguém tinha medo de pegar alguma doença por estar descalço ou se molhar na chuva. Enfim, Clemena viveu uma infância simples, mas repleta de aventuras, alegrias e novidades.
Clemena de volta a vida atual mantendo os olhos fechados, que lhe permitiam viajar a infância; não possui mais força para abri-los, nem mais os abrirá. O sorriso vai se fechando e a última lágrima resvalando pelos caminhos repletos de rugas do rosto. Clemena chora uma última lágrima não pela sua viagem ao além, nem por se encontrar só neste último instante, mas pela neta que está na sala, acorrentada ao computador, que jamais terá lembranças tão doces da infância como a avó. O computador tem joguinhos, mas não tem frutas, nem pula-pula, nem cavalos, de verdade. Quando a neta crescer usará o computador para trabalhar, mas já grandinha nunca usará uma corda para pular nem um peão e muito menos saberá o que é esconde-esconde.

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