Luiz Sanches
Dona Carmem, quarentona, mãe de duas pestes irremediáveis (que ao lado dela comportam-se como os melhores filhos do mundo), casada com o João Gilberto, é super religiosa. Nem se imagina saindo de casa sem rezar, por mais que a pressa insista em atrapalhar. Trabalhadora, costura para fora e produz vestidos deslumbrantes.
Devota agradecida de um sem número de santos, espera por um mundo melhor, sem violência, que perdoa, com mais caridade, pessoas discretas, companheiras, verdadeiras e seguidores fieis a Deus. Acha que este mundo não demora a chegar. Seus pais infundiram na filha o sonhar com este mundo e para seguir tradição, Dona Carmem também insere tais esperanças nos filhos que são irremediáveis, mas ela não sabe disso. Acha que o mundo que espera ver é o que os filhos irão desfrutar, no máximo, seus netos. "Deus há de permitir", sempre comenta.
Dona Carmem precisou sair um dia desses. Era o dia da aposta na loteria! Iria ganhar a vida, com certeza, pois sonhara os números da sorte grande: não tinha como perder! Os santos estavam inclinados a seu favor, afinal ela foi sempre uma mulher de exemplo e respeito. Merece a bolada para gastar com suas sonhadas viagens. Os números? Sabe de cabeça: 10, 15, 18, 26, 41 e 50. Ela vive em cidade do interior, daquelas que todo mundo conhece todo mundo e é quase impossível sair sem encontrar alguém na rua e hoje não foi diferente; logo ao sair encontra uma amiga e não perde a chance de contar o caso que leu no jornal matinal: bandido esfaqueia rapaz com 26 facadas para roubar tênis. "Um horror, acredita minha filha?" - relata ainda surpreendida pela notícia e conta exatamente como foi o caso. Terminado o caso, continua o caminho rumo à lotérica, quando se depara com o Sebastião, que finge não a ver e some logo ao dobrar a esquina. Dona Carmem logo fala consigo mesma: "safado, cachorro! Fez aquela porcaria de serviço lá em casa, me cobrou R$ 50,00 e não vai consertar! Vai morrer é no fogo do inferno, cretino!".
Na andança, se depara com um mendigo que a solicita uma moeda de R$0,10, mas este recebe um sonoro "vai trabalhar vagabundo".
Rumo à velha lotérica, se encontra com a Aparecida, solteira, coitada, mas que anda dando uns amassos no padeiro da padaria da esquina, que é casado. Dona Carmem não perde a chance de dizer o que é correto através de uma indireta, quem sabe a Aparecida desconfia: "posso encomendar uns 15 pãezinhos lá na sua casa Aparecida?", e segue viagem com um sorriso meia boca e nariz empinado.
Avista a loteria: é chegada a grande hora! Eram 18:00, quase se fechando e lá dentro estava o Custódio, antigo amigo da família, que se alegra ao vê-la e pergunta sobre a "vaca atolada" que a Dona Carmem cozinhou a um ano atrás. Custódio está desempregado, com despesas e relembrou a comida porque na sorte a Dona Carmem o convidava para jantar.
-"Oh Custódio não estamos mais fazendo janta lá em casa." Mentira. Não queria a presença de um oportunista.
Então, fez o jogo! Saiu feliz da vida na certeza indiscutível da vitória. Passados os dias saiu o resultado da loteria e Dona Carmem não acertou um número sequer. Perplexa, discutia com os santos em suas orações:
-Meu santinho, porque eu não ganhei? Sou a pessoa mais bondosa dessa cidade! Se os números não eram da loteria, então que sinal era esse?
Muito boa Luiz. Acorda Dona Carmen...
ResponderExcluirUm abraço do pessoal do Curta Cronicas