quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cíntia, um fantasma fruto do medo




Luiz Sanches
 
Cíntia é mais das "gentes" jogada fora: foi deixada no hospital que nasceu, entregue a própria sorte. Viveu dez anos em um orfanato, carecia todas as semanas do abraço de novos pais que nunca chegaram. Sempre inibida, calada e depressiva, perdeu a infância e os brinquedos que ganhava para qualquer menina que lhe tomasse. Quando aos onze anos, fugiu junto com outras meninas, pulando o muro que caiu devido a uma forte chuva. Não era do seu feitio escapulir, mas não pôde dizer não as amigas que lhe forçavam a fugir também. Pior foi a vida na rua, muito diferente e incrivelmente mais cruel que a vida encarcerada do orfanato, mas não tinha coragem de retornar ao abrigo certo. Com o tempo, as amigas que lhe obrigaram a fugir, uma a uma, foram tomando o seu rumo e Cíntia, num dos únicos lances que tomou partido e coragem na própria vida, procurou um trabalho de doméstica, onde aprendeu todos os serviços caseiros.
Cíntia por vezes chora na noite, baixinho, para ninguém ouvir. Ela sente uma dor no peito inexplicável, uma euforia, vontade de fazer algo, sair dali, passear, se divertir, falar com alguém e ser ouvida, fazer parte de uma roda de amigos, ganhar um presente de aniversário, algo sim, só o normal que todo mundo faz... Mas não sabe bem o que quer. As mãos tremem, o relógio marca duas da manhã, o sono a derruba de surpresa e no dia seguinte tudo foi esquecido. É hora de voltar ao trabalho. Ela sente que nasceu para não ter direito a nada. O medo de ninguém querer a sua amizade prevalece. É o medo de ter uma grande amiga e ela a decepcionar, de alguém a ridicularizar por ser empregada, de não saber conversar direito... Tantos medos... Ela queria participar, só um pouquinho, como se fizesse parte "destas gentes", como se hoje fosse gente como essa gente, como se pudesse falar também das coisas dos cosmos, do livro de direito ou como se soubesse algo da literatura brasileira. Se lhe perguntam algo, até do que sabe, logo sente algo na garganta lhe prender as palavras à boca e no preciso momento de demonstrar que sabe algo, não fala, como se alguém lhe apertasse a garganta ou lhe comece as palavras. Lógico, só é mandada, sempre é vista como menor que os outros. Ser vista como pequena é a visão dela também, não existe aí muito esforço ou sábias formas de mudar esse preconceito.
Quando ela entra no chuveiro, canta, como aprendeu na novela. Só que canta baixinho, aproveitando o barulho da água que bate no chão para esconder a sua voz, já que não acredita que tem voz bonita. Cantar no chuveiro é a sua festa particular, que se encerra quando alguém bate na porta a avisando aos berros que está demorando demais no banho. E olha que o seu banho nunca leva mais que uns quinze minutos. Assim é a sua vida de humilhações. Nunca tem direito a nada e não acredita que a sua voz é maravilhosa, que pode lhe tirar dessa vida e a transformar em patroa.
Cíntia já é mulher, mas tem os seus desejos de menina, que ainda não foram satisfeitos, mas ninguém sabe quais são: guarda-os para si. Nunca teve um romance duradouro, pois a vida de doméstica lhe privou de tempo para si. Acredita que jamais irá achar um amor, já que para ela amor é um conto de fadas que só acontece para os patrões. Não é tão bela, mas não é feia e sempre se viu horrível em qualquer espelho, até que passou a odiar espelhos. Não usa xampu ou toma conta de perder a barriguinha que aumenta. Chegou a receber cantadas nas ruas, porém sempre acredita que não se passa de algum tipo de piada.
Ela perdeu a chance de ser uma grande cantora, por medo de quem sabe, ser feliz, se expor, não ser aplaudida ou admirada. Não era bem isso, era medo de na verdade, ela não ser ninguém na vida, só uma sombra que vagueia, pensando que poderia ser gente e acabar ridicularizada por isso. Por mais que lhe elogiassem a voz , não acreditava, tapava os ouvidos e desprendia as palavras de menor valor quanto a sua pessoa. Mas no fundo acreditava... no fundo via algo que dizia que sim. Todo mundo tem um dom, que talvez não seja o que se deseja ter, mas é o que lhe torna especial. Cíntia não tem nada, mas tem uma voz quase à altura de uma Elis Regina. Sua voz lhe daria tudo! E se cala por medo!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Jorge, o chifrudo



 Luiz Sanches

Eu e a Lívia, minha esposa, já não andávamos lá aquele romance a um bom tempo. Tínhamos três filhos e contas para pagar. Por vezes, durante a madrugada, ela falando dormindo, chamava um tal de Ricardo e dizia que Ricardo é forte e musculoso, que Ricardo era homem de verdade, que Ricardo isso, que Ricardo aquilo. Eu não aceitaria um chifre de modo algum, mas não a perguntava quem é o tal Ricardo. Queria pegá-la de surpresa. Se eu achasse esse vagabundo, o mataria com suas próprias tripas... Não, isso é muito violento pra mim... O estrangulava com... Não... Eu brigaria com ele... Não... Ficaria com ciúmes. Isso! Safado!
Peguei o nome de todos que moravam lá perto de casa, inclusive o açougueiro, o pintor, o farmacêutico e ah, nunca confie no cabeleireiro. Nunca confie! Ha alguns que fingem que não gostam de mulher só pra levá-las para o fundo da loja e conversar quietinho. Por isso que eu gosto é daqueles que gostam de homem. Não, espera aí, eu to falando do cabeleireiro. Inclusive, fui pessoalmente saber do cabeleireiro dela e perguntei a atendente:
-Moça, qual o nome do cabeleireiro?
-Qual deles senhor?
Aí eu fui direto, com voz firme e cabeça erguida: -O Ricardo, quero falar com ele agora!
-Senhor, não temos nenhum Ricardo aqui. O senhor quer falar com outra pessoa?
-Han... eu quero falar com aquele grandão ali, do cabelo dourado, que ta fazendo o... ah... aquilo no cabelo da moça.
-Ah sim. Ele está ocupado agora, mas se quiser deixar o seu telefone...
-Quero sim! -Respondi rápido sem deixar a atendente terminar.
-Eu tenho certeza que ele irá te ligar, pois hoje cedo ele estava reclamando que está sozinho a um bom tempo e quer uma pessoa inteligente como o senhor para romance sério.
Esse episódio foi horrível, mas a minha luta para descobrir quem é o safado do Ricardo não parava por aí. Fui ao mecânico. Lá o Serjão me falaria se viu alguma atitude suspeita da Lívia.
-E aí Serjão, tá de boa véi?
-Só cara! Veio trazer aquele carango?
-Não, agora ele ta funcionando direitinho.
-Ah, então ta melhor que você, se é que você me entende, hahaha.
Ele sabe de algo, ele sabe de algo, eu sei que sabe. Pensei irritado.
-Pára de brincadeira e me diz uma coisa. Tipo assim, cê sabe né... Num é que eu tô pensando... Mas vai que... assim, tipo, pode ser que, só uma suposição...
-Fala logo, ó beiço caído!
-É que assim... Você viu a Lívia conversando com um tal de Ricardo aqui?
-Não, porque?
-É que eu to procurando ele. Você sabe de alguém assim forte, musculoso?
-Sei.
Pronto, havira achado o vagabundo!-Pensei.
-Se quiser eu posso te apresentar vários, você gosta dos altos ou dos baixos?
A minha vontade era de socar o Serjão, mas saí de lá direto para a casa da Zeila, amiga da Lívia. Zeila é uma mulher feia até no nome.
-Então você tá ganhado um chifre né? -Dizia ela parecendo que adorava saber da notícia, e continuou: Olha, um homem sem chifre é um homem indefeso, hahaha. Não se preocupe querido, depois de um vem outro! Na cabeça sempre sobra espaço, você vai ver, se não tampar a sua visão, claro, hahahaha.
-Você não vai me ajudar em nada, velha da cara pintada!-Saí de lá xingando nomes que nem me lembro.
-Pintada, mas sem chifre, querido. Opa, cuidado para não bater o chifre na porta... ai, bateu, mas não preocupa querido, se quebrou tem como colocar outro, hahaha.
Foi uma lastima conversar com a Zeila. Em pouco tempo toda a vizinhança já sabia do fato. Cheguei a ganhar um chapéu com chifres no trabalho e me perguntava como eles descobriram? E o pior é que eu era o único sem saber quem é o tal de Ricardo!
Numa noite, acordo eu para tomar água e quando volto está Lívia falando dormindo o nome do Ricardo. Colei o ouvido e ela dizia: "vai, com essa maquiagem, faz isso, Ricardo, vai..." Maquiagem? Ricardo era o maquiador? Estava resolvido! Naquela noite nem dormi, pensando no que iria fazer com esse maquiador safado.
Marquei um horário no salão onde a Lívia maquiava-se e lá tinha um tal de Ricardo. Agora ele vai ver uma coisa! Esperei um pouco e me aparece um homem moreno alto, musculoso e voz grave. Fiquei sem saber o que falar. Dava medo um homem daquele tamanho; se o encarasse numa briga estaria em desvantagem. Desenvolvi uma nova estratégia para conhecê-lo. Disse que queria fazer uma maquiagem e enquanto conversávamos, descobriria o seu rolo com Lívia. Certo é, fiz a maquiagem, tá... fiz... E o Ricardo é até um cara bacana e engraçado, não poderia defrontá-lo. Mas descobri que realmente tinha um rolo com Lívia. Após o ensejo resolvi terminar o casamento com ela e hoje vivo feliz da vida com o Ricardo, amor da minha vida.