Luiz Sanches
Cíntia é mais
das "gentes" jogada fora: foi deixada no hospital que nasceu,
entregue a própria sorte. Viveu dez anos em um orfanato, carecia todas as
semanas do abraço de novos pais que nunca chegaram. Sempre inibida, calada e
depressiva, perdeu a infância e os brinquedos que ganhava para qualquer menina
que lhe tomasse. Quando aos onze anos, fugiu junto com outras meninas, pulando
o muro que caiu devido a uma forte chuva. Não era do seu feitio escapulir, mas
não pôde dizer não as amigas que lhe forçavam a fugir também. Pior foi a vida
na rua, muito diferente e incrivelmente mais cruel que a vida encarcerada do
orfanato, mas não tinha coragem de retornar ao abrigo certo. Com o tempo, as
amigas que lhe obrigaram a fugir, uma a uma, foram tomando o seu rumo e Cíntia,
num dos únicos lances que tomou partido e coragem na própria vida, procurou um
trabalho de doméstica, onde aprendeu todos os serviços caseiros.
Cíntia por
vezes chora na noite, baixinho, para ninguém ouvir. Ela sente uma dor no peito
inexplicável, uma euforia, vontade de fazer algo, sair dali, passear, se
divertir, falar com alguém e ser ouvida, fazer parte de uma roda de amigos,
ganhar um presente de aniversário, algo sim, só o normal que todo mundo faz...
Mas não sabe bem o que quer. As mãos tremem, o relógio marca duas da manhã, o
sono a derruba de surpresa e no dia seguinte tudo foi esquecido. É hora de
voltar ao trabalho. Ela sente que nasceu para não ter direito a nada. O medo de
ninguém querer a sua amizade prevalece. É o medo de ter uma grande amiga e ela
a decepcionar, de alguém a ridicularizar por ser empregada, de não saber
conversar direito... Tantos medos... Ela queria participar, só um pouquinho,
como se fizesse parte "destas gentes", como se hoje fosse gente como
essa gente, como se pudesse falar também das coisas dos cosmos, do livro de
direito ou como se soubesse algo da literatura brasileira. Se lhe perguntam algo,
até do que sabe, logo sente algo na garganta lhe prender as palavras à boca e
no preciso momento de demonstrar que sabe algo, não fala, como se alguém lhe
apertasse a garganta ou lhe comece as palavras. Lógico, só é mandada, sempre é
vista como menor que os outros. Ser vista como pequena é a visão dela também,
não existe aí muito esforço ou sábias formas de mudar esse preconceito.
Quando ela
entra no chuveiro, canta, como aprendeu na novela. Só que canta baixinho,
aproveitando o barulho da água que bate no chão para esconder a sua voz, já que
não acredita que tem voz bonita. Cantar no chuveiro é a sua festa particular,
que se encerra quando alguém bate na porta a avisando aos berros que está
demorando demais no banho. E olha que o seu banho nunca leva mais que uns
quinze minutos. Assim é a sua vida de humilhações. Nunca tem direito a nada e
não acredita que a sua voz é maravilhosa, que pode lhe tirar dessa vida e a
transformar em patroa.
Cíntia já é
mulher, mas tem os seus desejos de menina, que ainda não foram satisfeitos, mas
ninguém sabe quais são: guarda-os para si. Nunca teve um romance duradouro,
pois a vida de doméstica lhe privou de tempo para si. Acredita que jamais irá
achar um amor, já que para ela amor é um conto de fadas que só acontece para os
patrões. Não é tão bela, mas não é feia e sempre se viu horrível em qualquer
espelho, até que passou a odiar espelhos. Não usa xampu ou toma conta de perder
a barriguinha que aumenta. Chegou a receber cantadas nas ruas, porém sempre
acredita que não se passa de algum tipo de piada.
Ela perdeu a
chance de ser uma grande cantora, por medo de quem sabe, ser feliz, se expor,
não ser aplaudida ou admirada. Não era bem isso, era medo de na verdade, ela
não ser ninguém na vida, só uma sombra que vagueia, pensando que poderia ser
gente e acabar ridicularizada por isso. Por mais que lhe elogiassem a voz , não
acreditava, tapava os ouvidos e desprendia as palavras de menor valor quanto a
sua pessoa. Mas no fundo acreditava... no fundo via algo que dizia que sim.
Todo mundo tem um dom, que talvez não seja o que se deseja ter, mas é o que lhe
torna especial. Cíntia não tem nada, mas tem uma voz quase à altura de uma Elis
Regina. Sua voz lhe daria tudo! E se cala por medo!
Era o medo de não ser aceita! Todos vivem unica e exclusivamente para isso, ser aceito pelo outro...adorei o texto! Bjs Lu. Renata Prado.
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