quinta-feira, 21 de março de 2013

A falta que um amigo faz




Luiz Sanches

Jogado as traças, fedendo pela falta urgente de um banho, fato ignorado pela enfermeira que trocava o turno e negligenciou para poder jogar paciência no computador. São três da manhã, sem carros demonstrando que ali existe uma rua, sem visitas... Ah! Estas nem de dia! Clemente despertou de um sono gostoso para a vida real. Ele está num hospital da mais alta classe. Seu coração não entra no passo a décadas e agora suporta o corpo com esforços exorbitantes. A esposa não demonstrou a esperada luta ao seu lado. O filho, na obrigação urgente em doar sangue ao decadente pai, descobre, aos 29 anos, não ser filho legítimo deste, no momento da doação, pela incompatibilidade sanguínea. A gastadora esposa de clemente o traíra a anos e só agora ele tem conhecimento do fato, para piorar o já sofrido órgão. Clemente não tem parentes ou amigos que se possam chamar de próximos. Ele é um astro da música popular. Admirado, invejado, motivado, contrariado e outros “ados” fizeram de sua carreira um sucesso esplendido, sustentado por pilares fortes como palitos de picolé.  A enorme massa de fãs se silencia à noite frente ao prédio, que por ser um hospital, por motivos óbvios, precisa de silêncio. Se este não fosse, a massa gritaria noite adentro o nome de Clemente Pedra, com poucos conhecendo seu nome de batismo que nada lembra seu nome artístico.

Clemente só no quarto escuro, com aquela queimação na garganta, com aquele vazio interno, mas o peito apertado, com sabe-se lá a espera de quê, com um... Como explicar?!?... Chora o aparente fim do ciclo de vida. Talvez não passe dessa. A falta que alguém próximo lhe faz. Alguém que não precise ser famoso. Alguém só pra falar de bobagens. Só pra ali estar, qualquer hora que precisasse. Alguém que sinta prazer na sua presença e que transforme qualquer ambiente ranzinza em recinto das risadas. Alguém que compreenda aquilo que não se diz e sinta a falha na fala quando se declara “eu estou bem!”.  Alguém para fazer presença até calado. Alguém para se importar. Para contar os casos antigos como se acontecesse no instante que o locutor relata o fato com aquele contento que liga a todos numa mesa de festas ou numa rua qualquer. Este alguém não há! Talvez seja um pouco tarde para perceber quanta falta isso fez em sua vida, mascada pelos microfones afoitos a uma entrevista da sua gloriosa carreira.

Semanas após a entrada no hospital, os parentes de Clemente se reuniram em lágrimas no hospital, para preparar os papeis necessários para a partilha de bens, devido ao falecimento do astro da música popular. O que os tomou de surpresa é que desconheciam com exatidão a real situação de Clemente (não acompanharam sua cruel estadia no hospital), e foram enganados pela impressa sensacionalista: Clemente Pedra vivia e bem! Mesmo desenganado pelos médicos. Sua melhora foi espantosa e quase milagrosa. Ele descobriu na calada da noite aquela pessoa que sempre lhe fez falta nos dias e noites de solidão que lhe acompanhavam após os shows, ou em casa. Não descobriu um novo amor por uma enfermeira. Não foi uma fã ou um fã que se aproximou e falou exatamente aquilo que Clemente sempre precisou ouvir. Não foi o médico que soube exatamente o que existe no mais profundo dele. Foi Clemente que se descobriu a si mesmo! Viveu a vida para dar alegria aos outros pela sua música, mas se esqueceu de contentar a si mesmo. Não tinha tempo em meio à multidão para ouvir a melodia de seu próprio coração. Só falava aos entrevistadores o que ocorria externamente e nunca ouviu seu interior. Não aceitou seu nariz e se submeteu a cirurgia, porém agora nota que este era igual ao da sua mãe. Não se permitiu encantar pelo silêncio sozinho e rir consigo mesmo. Não se questionou de seus próprios conceitos infundados. Jamais se divertiu sozinho em meio às montanhas. Não se lembra de realizar projetos novos e desafiadores, que só permitem conquistas individuais. Não procurou o que mais gosta de fazer. Não cozinhou nem aprendeu. Não se debruçou ante as pernas numa encosta para vislumbrar o pôr do sol. Não saboreou o que para ele era importante e aos outros pouco importa. Só atendeu aos pedidos alheios e negligenciou os próprios.

Clemente achou uma companhia que estará sempre contigo, na felicidade ou infelicidade. A doença foi o alicerce para parar e refletir sobre si mesmo. Se alguém se ama, não há quem possa derramar ódio para lhe derrubar, já que alguém só se deixa sentir odiado se no seu interior não exista quem tome partido e demonstre que é na verdade, um ser amado! Por fim, Clemente se recuperou, porque a cura se faz por dentro e não só pelos medicamentos. Ele ainda cantou muitos anos após, salvo por uma amizade de ouro que poucos infelizmente conhecem.

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