quarta-feira, 3 de abril de 2013

Clemena sonha na cama





Luiz Sanches

Clemena permitiu que o tempo deixasse aparente a sua idade. Rugas a ressaltam, cabelos pintaram-se de branco, às mãos nasceram veias a mostra e nas vestimentas antigas os rasgos concertados aparecem aos montes. Deitada à cama, sozinha pela manhã sem dormir por toda a noite. O sol entra sem permissão, batendo-lhe no rosto, pelo vidro quebrado da janela tão antiga como a dona.
Clemena sofre de dores na região do coração. Já viveu muito e não teme a esperada passagem para a outra vida prometida. O sorriso carinhoso que nunca a deixa contorna-lhe o rosto quando lhe vem as memórias do passado. Lembra-se dos gostosas tempos idos de menina. Sofrendo na cama, a memória é o artifício de sustento da alegria que nunca se separou da doce velhinha.
Clemena é levada pela companheira memória ao tempo de quando era menina e subia em árvores para pegar frutas, escondida dos pais, claro. Assim, a fruta ficava muito mais doce do que se alguém pegasse para ela. Na antiga fazenda familiar, disputava pega-pega com os cinco irmãos mais velhos e três primos. O cachorro de pêlo listrado tropeçava querendo brincar com os meninos que fugiam um dos outros na brincadeira do pega-pega. Clemena nova e de pernas curtas não tinha como correr muito e sempre era pega, ai era ela que deveria pegar um outro, quase sempre sem sucesso, o que a fazia por vezes sentar e chorar, sendo logo consolada por um irmão que se deixava pegar. As brincadeiras eram as mais divertidas: de roda, de pular corda, de bolinhas de gude, sempre expulsa por um menino que entendia que aquilo não era brinquedo de menina. Tinha também o adorável e demorado esconde-esconde. Era pura diversão quando algum menino inventava um esconderijo jamais pensado ou quando alguém era descoberto; tinha que correr com todas as forças até o "pique". As bonecas eram raras, porém não as feitas de pano ou de palha, pela prestativa mãe, que sempre se empenhava em fazer uma boneca mais bonita que a outra. Clemena ficava horas tentando pegar um passarinho que desse bobeira e pudesse ser engaiolado, para logo ser solto dentro de casa.
Houve uma vez que ela e dois irmãos se perderam tentando acorrentar um cavalo diferente que apareceu na vizinhança. Sem o cavalo e sem o rumo de casa, inventavam instrumentos mágicos, fabricados de capim, galhos de árvore e sementes que pudesse trazê-los de volta à casa. Cantarolando e pulando, clamavam o santo preferido para leva-los em casa. Sem querer, chegaram na hora que a mãe saia à porta de casa para chama-los para o almoço, sem desconfiar das peripécias dos meninos. O ensejo virou um segredo da turma que sonhava todas as manhãs em voltar para desta vez capturar o cavalo. Discutiam que aquele cavalo era um unicórnio que tem o poder de desaparecer no meio da mata, por isso não conseguiram o capturar.
Como bons amigos e irmãos, confidentes e unidos, tinham aquelas longas conversas noite adentro no mesmo quarto, ou para acalmar a pobre Clemena que tinha medo do barulho das arvores e do vento e não conseguia dormir. Nas conversas com uma das primas, Clemena revelava todos os seus profundos segredos e desejos, escondidinhas no galinheiro para ninguém ouvir.
Comiam doces dos mais variados sabores e formas. Conheciam bichinhos das mais esquisitas espécies. Ninguém tinha medo de pegar alguma doença por estar descalço ou se molhar na chuva. Enfim, Clemena viveu uma infância simples, mas repleta de aventuras, alegrias e novidades.
Clemena de volta a vida atual mantendo os olhos fechados, que lhe permitiam viajar a infância; não possui mais força para abri-los, nem mais os abrirá. O sorriso vai se fechando e a última lágrima resvalando pelos caminhos repletos de rugas do rosto. Clemena chora uma última lágrima não pela sua viagem ao além, nem por se encontrar só neste último instante, mas pela neta que está na sala, acorrentada ao computador, que jamais terá lembranças tão doces da infância como a avó. O computador tem joguinhos, mas não tem frutas, nem pula-pula, nem cavalos, de verdade. Quando a neta crescer usará o computador para trabalhar, mas já grandinha nunca usará uma corda para pular nem um peão e muito menos saberá o que é esconde-esconde.

terça-feira, 26 de março de 2013

Poemas, versos e citações 2



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A inspiração
Ah como eu queria que o mundo sentisse isso que transborda dentro de mim. Ah como eu queria saber dizer onde está o caminho da inspiração. Ahhh, como eu queria saber compartilhar... te encher de prazeres improdutíveis por outro meio senão o teu interno! Como eu queria calar a boca do enfurecido com o silêncio da sabedoria. Como eu queria abrir os corações de pedra cansados de sofrer utilizando novos esplendores. Como eu queria derrubar o stress do mundo pela música que toca a alma. Talvez não possa, mas se te toquei, já basta!
Luiz Sanches


As janelas da minha casa
Abri a janela de manhã. Estava escuro e chovia
Eu não senti o perfume das rosas
Sei que os perfumes das rosas justificam-se pelo adubo.
Mas se não der raiz, pelo menos foi plantada
Não é porque ao tentar se colher a flor, e sem querer se quebrar o galho,
que ela não irá exalará mais o seu perfume.
Talvez ela possa ser replantada e gere frutos.

Mas ouvi a musica tocar e olhei para o outro lado
Não era a janela aberta, mas um longo percurso
Eu vi os meus paços. Faziam uma curva
A chuva ficou mansa e senti a água fresca
Acho que preciso respirar o ar puro, crescer, refletir e lutar

Repentinamente me senti com ânsias
Percebi que os pássaros a muito cantavam e eu não escutava
O sol acorda todas as manhãs
Mas só ilumina quem o aceita
Percebi que a voz dá base ao grito
Que as pernas já andavam sozinhas quase correndo
Aí o novo e a maturidade vieram me visitar
Ah como é bom ser feliz por si só e ter o que doar
Luiz Sanches


A chama que corrompe
Oh forte chama que rouba o momento e afervora sem razão. Sou do ar e trago combustível a flama que tudo incinera tal brasa ardente a minha vida.
Abraço o futuro que me corrompe por não estar aqui.  Afugento o agora com gás inflamado que excita meus quereres ardentes de ti. Como refrear o fogo que tudo consome sem me deixar saborear? Como saber que hora é a hora e que hora esfriar?
Luiz Sanches

Eu sei
             Eu sei que você tem muito a oferecer! Eu sei que você se guarda! Eu sei que você se acha menos do que é, só esperando alguém para te elevar e te convencer que você é muito mais! Eu sei que você não confia, mas o que mais quer é confiar! Eu sei que tem hora que você quer, quase se joga, mas volta atrás! Eu sei que não é tão simples! Eu sei que a vida te deu rasteiras, mas em quem não deu? Eu sei que você tem tanta coisa para falar e acha que ninguém quer escutar. Você quer sair, rir, se divertir, mas não! Eu sei e você sabe também: você é especial! O que você tem para mostrar cabe em um caminhão! Todo mundo sabe e você sabe que não esconde.
            E acima de tudo, eu sei que você sabe que eu sei! E sabe de uma coisa? Porque você não se permite? Porque luta? Você é tão humano quanto eu! Você tem tantas vontades quanto qualquer um! Tem gente que se apaga. E você? Eu sei!
Luiz Sanches


Conto um encanto
 De pronto, o pranto prostrou-se em seu canto, dando luz ao encanto dos sentidos.
Entretanto, somente peço que produza tal encanto de contato constante e colado, assim agarradinho feito fonte de contento que apronte ao meu lado.



Luiz Sanches


quinta-feira, 21 de março de 2013

A falta que um amigo faz




Luiz Sanches

Jogado as traças, fedendo pela falta urgente de um banho, fato ignorado pela enfermeira que trocava o turno e negligenciou para poder jogar paciência no computador. São três da manhã, sem carros demonstrando que ali existe uma rua, sem visitas... Ah! Estas nem de dia! Clemente despertou de um sono gostoso para a vida real. Ele está num hospital da mais alta classe. Seu coração não entra no passo a décadas e agora suporta o corpo com esforços exorbitantes. A esposa não demonstrou a esperada luta ao seu lado. O filho, na obrigação urgente em doar sangue ao decadente pai, descobre, aos 29 anos, não ser filho legítimo deste, no momento da doação, pela incompatibilidade sanguínea. A gastadora esposa de clemente o traíra a anos e só agora ele tem conhecimento do fato, para piorar o já sofrido órgão. Clemente não tem parentes ou amigos que se possam chamar de próximos. Ele é um astro da música popular. Admirado, invejado, motivado, contrariado e outros “ados” fizeram de sua carreira um sucesso esplendido, sustentado por pilares fortes como palitos de picolé.  A enorme massa de fãs se silencia à noite frente ao prédio, que por ser um hospital, por motivos óbvios, precisa de silêncio. Se este não fosse, a massa gritaria noite adentro o nome de Clemente Pedra, com poucos conhecendo seu nome de batismo que nada lembra seu nome artístico.

Clemente só no quarto escuro, com aquela queimação na garganta, com aquele vazio interno, mas o peito apertado, com sabe-se lá a espera de quê, com um... Como explicar?!?... Chora o aparente fim do ciclo de vida. Talvez não passe dessa. A falta que alguém próximo lhe faz. Alguém que não precise ser famoso. Alguém só pra falar de bobagens. Só pra ali estar, qualquer hora que precisasse. Alguém que sinta prazer na sua presença e que transforme qualquer ambiente ranzinza em recinto das risadas. Alguém que compreenda aquilo que não se diz e sinta a falha na fala quando se declara “eu estou bem!”.  Alguém para fazer presença até calado. Alguém para se importar. Para contar os casos antigos como se acontecesse no instante que o locutor relata o fato com aquele contento que liga a todos numa mesa de festas ou numa rua qualquer. Este alguém não há! Talvez seja um pouco tarde para perceber quanta falta isso fez em sua vida, mascada pelos microfones afoitos a uma entrevista da sua gloriosa carreira.

Semanas após a entrada no hospital, os parentes de Clemente se reuniram em lágrimas no hospital, para preparar os papeis necessários para a partilha de bens, devido ao falecimento do astro da música popular. O que os tomou de surpresa é que desconheciam com exatidão a real situação de Clemente (não acompanharam sua cruel estadia no hospital), e foram enganados pela impressa sensacionalista: Clemente Pedra vivia e bem! Mesmo desenganado pelos médicos. Sua melhora foi espantosa e quase milagrosa. Ele descobriu na calada da noite aquela pessoa que sempre lhe fez falta nos dias e noites de solidão que lhe acompanhavam após os shows, ou em casa. Não descobriu um novo amor por uma enfermeira. Não foi uma fã ou um fã que se aproximou e falou exatamente aquilo que Clemente sempre precisou ouvir. Não foi o médico que soube exatamente o que existe no mais profundo dele. Foi Clemente que se descobriu a si mesmo! Viveu a vida para dar alegria aos outros pela sua música, mas se esqueceu de contentar a si mesmo. Não tinha tempo em meio à multidão para ouvir a melodia de seu próprio coração. Só falava aos entrevistadores o que ocorria externamente e nunca ouviu seu interior. Não aceitou seu nariz e se submeteu a cirurgia, porém agora nota que este era igual ao da sua mãe. Não se permitiu encantar pelo silêncio sozinho e rir consigo mesmo. Não se questionou de seus próprios conceitos infundados. Jamais se divertiu sozinho em meio às montanhas. Não se lembra de realizar projetos novos e desafiadores, que só permitem conquistas individuais. Não procurou o que mais gosta de fazer. Não cozinhou nem aprendeu. Não se debruçou ante as pernas numa encosta para vislumbrar o pôr do sol. Não saboreou o que para ele era importante e aos outros pouco importa. Só atendeu aos pedidos alheios e negligenciou os próprios.

Clemente achou uma companhia que estará sempre contigo, na felicidade ou infelicidade. A doença foi o alicerce para parar e refletir sobre si mesmo. Se alguém se ama, não há quem possa derramar ódio para lhe derrubar, já que alguém só se deixa sentir odiado se no seu interior não exista quem tome partido e demonstre que é na verdade, um ser amado! Por fim, Clemente se recuperou, porque a cura se faz por dentro e não só pelos medicamentos. Ele ainda cantou muitos anos após, salvo por uma amizade de ouro que poucos infelizmente conhecem.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Erivaldo é um homem de costumes



Luiz Sanches

Erivaldo é um homem de costumes, prefere o que é consagradamente certeiro: "time que está ganhando não se mexe"; esta é uma de suas habituais frases. Não que seja um homem nervoso, mas por vezes perde a cabeça. Dizem que por isso ficou calvo. Erivaldo não é um homem de se preocupar com as aparências e possui uma barriguinha protuberante. Com o avanço da idade, já que possui uns cinquenta anos, o bigode ganhou uma característica marcante em relação aos outros homens: o lado direito está com os fios todos brancos e o esquerdo esbranquiçando aos poucos, ao natural da idade. Parece até que pintou só um dos lados. No novo emprego, conheceu a Neuza, que é uma mulher que jamais se deixa ser vista sem maquiagem. Possui como arma batons de cores que nem o arco-íris conhece, sempre engatilhados para modificar a cor e brilho dos seus lábios carnudos, glitter para realçar, brincos sortidos e grandes, pó para o rosto, pincéis e mil outros apetrechos absolutamente desconhecidos pelo mundo masculino. Numa destas conversas com Erivaldo que tenta se enturmar no novo emprego, a Neuza, muito franca e até indelicada, vai soltando aos poucos o seu descontentamento quanto à aparência dele. A Neuza não perde a oportunidade de apontar algo que julga errado nas pessoas e com o novato Erivaldo não seria diferente; é o seu modo de se mostrar conhecedora da moda chique e de dar a sua contribuição para que todos fiquem no "ponto". Numa destas conversas atravessadas e intrometidas da Neuza, Erivaldo revela:
-Minha mulher adora a barba, quando nos conhecemos já tinha barba.
-Adora nada... - Dizia a Neuza - Mulher nenhuma gosta. Olha, ela não fala pra não te deixar sem graça. Vai por mim, conheço!
Com tanto falar a Neuza e suas colegas, Erivaldo aos poucos foi cedendo e se sentindo mal com a sua aparência. Começou a se observar no espelho. Necessitava entregar um novo homem a sua esposa.
Quando Erivaldo já estava no emprego a um mês, Luciana, sua esposa, deveria ficar uma semana em um congresso em outra cidade. Era o momento do ataque da Neuza: -"Erivaldo, aproveita e mude-se todo para quando ela chegar encontrar um novo homem!". O levou a um cabeleireiro, cortou a barba, o fez insistentemente comprar uma peruca, camisa nova estampada, trocar o óculos (o antigo não estava na moda), comprar uma cinta para segurar a barriga, perfume do tipo que nunca usou, trocou os sapatos novos porque a cor não estava agradável, até a sobrancelha estava diferente e os pêlos do corpo depilados e... Erivaldo sem perceber já tinha gasto todo o primeiro salário. Mas era outro homem. "Pronto!"- dizia a Neuza com um belo sorriso -"ela vai amar! Agora só falta você fazer um tratamento para essas estrias, inclusive, a sua mulher também, tem também que tirar uma papada aqui e diminuir o nariz..." - lá ia soltando os defeitos da mulher com todas as letras na frente dos vendedores da loja, quando fora interrompida pelo Erivaldo, que já se cansara de tanta mudança: -"ta bom, ta bom, preocupa não... preocupa não".
No dia da volta da mulher, Erivaldo a avisara que teria uma grande surpresa. Preparou o jantar e os filhos o ajudava, segurando o riso ou espanto, para não constranger ao pai. Quando ele ouviu a chave na porta dos fundos, correu para abraçá-la e ao vê-lo, Luciana espalha andares acima do prédio um enorme grito de susto, crendo se tratar o marido de um ladrão: nunca o vira sem barba e já se acostumou com a sua careca. Não se sabia quem se assustou mais: ela, o marido "disfarçado" ou a mulher do terceiro andar com o amante na cama. Luciana demorou a aceitar a nova "cara metade". Faltava nos beijos a barba encostando ao seu rosto e a careca charmosa. Gostou da camisa nova, mas do marido... Como dizer a verdade? Como não magoar o homem que se modificou tanto para agradá-la infrutivelmente... O conheceu já sem alguns fios na cabeça e tornou-se mais charmoso a cada fio a menos. Quanto a barba, o admirou de início por esta. Ter uma barba meio branca não o tornava um palhaço, mas o "seu" homem em meio à multidão, único, diferente... ele! Sem saber como elogiar, sentia-se ao lado de um outro qualquer que invadira sua casa e só pensava: "onde está o meu marido?". Luciana ama ao Erivaldo na sua forma física como ele é. Nunca sentiu vergonha pela barriga saliente ou a barba desfigurada. Em meio ao jantar, teve uma ideia, o puxou para cama e apagou todas as luzes, agradeceu pelo que fez por ela e o abraçou fortemente. "Ah..." -pensou -"agora sim, esse é o marido que eu amo!". Sem jamais lhe contar que estava desapontada com as mudanças, tratou de tentar se acostumar à nova aparência, porque o que importa para ela é o que os olhos não vêem.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Júnior bebeu demais





Luiz Sanches

Certa vez vi meu filho entrando em casa bêbado, sempre recriminei tal atitude. Certo é, não suporto um bêbado. Passou crendo-se invisível pela entrada dos fundos e de imediato se dirigiu ao quarto, sem olhar para trás. Sou um homem dado ao trabalho, sustento esta casa e, suportar um filho bêbado, é demais. Com o meu dinheiro, pior ainda!
Desta vez, procurei ser diferente, nem sei por quê! Sempre repreendia severamente meus filhos por não estudarem, sofrerem infração de trânsito ou outras coisas. Desta vez quero ser diferente, quero agir com calma. Minha esposa ainda está no doutorado, minha filha na faculdade ou na vagabundagem e o Marcos, ele me disse aonde ia, mas não me lembro. Somos só o Junior, bêbado, por sinal, e eu. Não vou recriminar desta vez. Meu trabalho está adiantado e se eu passar a noite conversando com ele ainda posso terminar a tempo.
Segui o corredor que leva ao quarto do Junior no escuro. Parei frente à porta do seu quarto e tentei escutar qualquer barulho. Somente o tique-taque do relógio da ante-sala chamava a atenção no meio da noite. Acho que deseja esconder a sua vergonha.
- Junior! - batia a sua porta - posso entrar?
-Ah? Papai? Ah, pode? "Po-po-pode"... - Respondia Junior com voz trêmula e assustada.
Abri a porta e me deparei com o quarto todo revirado. Coisa incomum no Junior, porque é um garoto exímio, sempre elogiado pelas visitas que recebo. Ele possui uma organização natural. Junior é um exemplo mesmo para mim, que fui amparado por livros de organização em empresas, organização no lar, logística, etc. Já há muito notara que às vezes somos mais dedicados na empresa que em casa, dado que me enfurecia a desorganização da empresa onde trabalho, mas não o meu quarto desorganizado.
-Olá filho, como está? - Não sabia ao certo o que falar.
Quase o obrigara arrumar o quarto, mas lembrei que desta vez desejava uma didática diferente.
- Bem pai.
Eu senti que esse bem não estava tão bem. Tinha que me tornar um Sherlock Holmes neste instante e entender precisamente o que estava acontecendo. Não sabia qual seria a próxima frase. Cheguei ali com a meta de não repreendê-lo pela bebedeira e ele me disse "-bem pai". Me desarmou. De repente percebera que somente sabia repreender, não ouvir.
- Você tem tocado sua guitarra? - Emiti essa frase quase que automática.
- Não.
Ai, o que eu falo agora? Repreender é bem mais fácil.
- Posso sentar na sua cama?
- Tá desarrumada... Pai, o meu quarto está uma bagunça, tá feio. Quem sabe amanhã?
Sentei-me na cama, que por sinal, desarrumada, estava mais arrumada que a minha. Sem dizer nada, rapidamente, Junior queria arrumar, mas a bebedeira o impediu.
- Junior, meu filho, estou vendo que você está bêbado, não precisa chegar em casa assim, você tem...
- O que você tem com isso? Rapidamente Junior me interrompeu.
Repreensão não, refleti prontamente. Não tínhamos muitas conversas, mas me responder assim é demais. Suspirei e consegui me acalmar, afinal, ele estava bêbado. Junior nunca me respondia mal...
- Junior, sente-se aqui ao lado do seu pai.
Não esperava que ele se sentasse, mas sentou e com lágrimas nos olhos. Quando eu tinha visto isso? Lágrimas, do Junior? Não entedia o que estava acontecendo.
- Que foi Junior?
- Nada não.
- Pode falar. - Houve um grande silêncio. Esperei calmamente a resposta.
- Eu não queria ver a minha mãe e o senhor se separarem!
Como um raio, fui atingido. Não sabia o que falar. Realmente, já pensava em separação.
- Amo muito o senhor. - Junior me abraçou - Sei que você não sabe lidar comigo e o Marcos, mas mesmo assim te amo e não quero te ver longe. Sei que você trabalha muito por nós. Sei que você tem a cara fechada, mas nos ama! Se você se separar da mamãe, não sei por quem escolher. Prefiro escolher os dois!
Ele tem 17 anos e parecia uma criança. No mesmo dia, tive uma conduta: não repreendi minha esposa. Conversarmos a noite inteira. O dia raiava e ainda conversávamos. Fui receptivo. Nem lembrei-me do meu trabalho... Pra falar a verdade, pedi férias! Queria curtir a minha esposa e filhos, porque descobri o novo dentro da minha casa. Quando não há competitividade, lutas, poder ou repreensão,  e sim, amor.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Causos da roça

Luiz Sanches

Seu" Pereira é um senhor de avançada idade, morador da roça desde criança, cabelos brancos como a neve, certo dia, visitado pelos seus netinhos, conta um de seus "causos", assim descrito com suas palavras carregadas do "palavriado do interior":

"Quando eu tinha lá pruns 18 ano, tinha uma mocinha com o nome de Ana Maria qui eu já tinha visto umas trêis veis, mas só de longe. O pai dela era um fazendero bravu e ai eu pensei: -mais eu vô é lá fazê uns trabai pra ele e conheço a fia do patrão. Pois bem, fiquei sabendo qui o omi tava pricisando de gente, ai foi o Primo Antoin mais eu. O Antoin era muito medroso nessa épuca, tinha lá seus 16 ano. E ia nóis naquela cavalgada boa, se divirtindo, contando os causo da roça, as lembrança de minino. Ai eu falei: oh Antoin, eu tô assim com vontade de se aproximá duma moça lá na casa. Quando nois chegá lá cê vê si distrai o pai dela pra nóis podê papiá um mucadin. -Intão tá.-dizia o Antoin."

"E fomu. Chegamo naquela fazenda bunita, com umas coisa diferente que só homi grande pudia comprá. E de inicio nóis cunheceu o dono da fazenda. Mais oh homi difici de entendê o qui ele fala. Ele falá umas palavra tudo imbolada, com um jeitão assim todo bruto, parece qui tá xingando, mais é o jeito dele de bulbuciá, parece qui tinha umas abelhas na lingua. Ficava falando lá e nois só balangando a cabeça sem intendê nada. Bom, inda bem qui a  Dona Critéria, a patroa dele, tava lá e fazia a gente intendê u qui o homi falava. De veis inquando ele falava algo e nóis balançando a cabeça pra mostrá qui tava ouvindo, ele batia a mão na mesa nervoso, ai a dona Critéria falava qui ele tava pirguntando algo pra nois. ha ha ha! Oh homi dificil! Ai ele falô para nois trabaiá lá e falô qui tem umas tora de madera qui vai chegar antes do armoço qui é pra nois i lá pegá perto da istrada. Tá bom..."

"Ai nois intrô mais pra dentro pra tumá um café e eu assim todo emocionado achando que ia ver a Ana Maria, mas veio foi o Vitin, irmão dela. Oh muleque disgramado! Oh minino artêro! Era daquelis minino qui gostava de apurrinhá e se metê onde num é chamado. E o Vitin ficava azucrinando nóis lá. Falava assim: -Vamu brincá de piqui iscondi? Mais eu num sei quantas veis esse muleque insistiu nisso e garrava minha camisa e puxava, mas quiria porque quiria. Oh vontade de dá uns tapa nesse muleque. E danava a ficar perguntando coisa pra nóis e a gente num queria prosear. Ai nóis ficô calado. E o minino falava: -Cês tão brincando de vaca amarela? Outra hora ele viu um papilin qui eu tinha no bolso, puxou e saiu desimbestado."-Dá isso aqui, dá isso aqui minino..." dizia eu correndo atrais dele e Antoin rindo deu. E lá tinha um cachurrim branquim de uma raça esquisita, um tar de pudi, puli... ah sei lá!"

-Deve ser poodle vovô! Interrompe um dos netos.

-É isso mesmo! Má voltando pro causo... "Era um bichin chato que ficava relando e agarrando nas perna da gente fazendo bubiça. Mas nóis cheguemu na beira da istrada i lá tava as tora. Mais as tora era pesada só. Qui treco difici de levantá. Dois era pouco homi. Quando nóis foi pô a terceira tora, colocamo um canto dela na carroça e no otro canto tava Antoin mais eu levantando e a madeira dislizô duma veis pra fora da carroça e nóis ouve um grito de cachorro e quando nóis oia, era o pudi..."

-É poodle vovô! -interrompe novamente o netinho. -Intão mininu, pudi é o qui eu falei! "Intão, o tar do pudi foi ismagadu pela tora. Tava murtin qui nem galinha morta na panela. Aí o medroso do Antoin falô: Má de onde esse bicho veio? Nóis num viu ele chegá. Ai, minhas veia ta sartando do pescoço! E o Antoin tava se borrando todo."

"Aí eu falei: Que qui eu faço? Num pode falá qui o patrão é nervosu. Se subê, pode matá é nois. Si eu morrê, eu perco o dia de sirviço. Si Ana Maria discobri ai tá tudo se acabado de veis. E eu vi la na cabiceira que invia alguém. Quando eu vejo, é o Vitin."

"-Eu ouvi um grito de criança e vim ver o qui é. -Falô o Vitin. Eu acho qui ele ouviu o grito do cachorro quando a tora caiu nele e ta achando que é criança. De pronto eu respondi ligeiro: "-Né cacho... han, han... Né criança não. É o Antoin que quando machuca grita qui nem mulé. Mas vamu imborada logo qui aqui né lugar de menino apurinhá não." Mais moço, esse foi o trabaio mai ligero qui nóis tinha feito pra gente se iscafedê logo dalí, que se a peste do minino vê o pudi nóis tava lascado."

"E dizia o endiabrado do minino.-Quero andar de cavalinho! Pra tirá logo ele dalí peguei de cavalinho e o Antoin pegou a carroça e o muleque vem atasaná de novo: -"eu vou mostrá pru ceis como se faz os boi andá rápido", e taca pedra nos boi. Com muito custo, nóis voltemo pra fazenda. Como a tora de madeira tava manchada de sangui e num dava pra tirá, eu cortei o braço com uma faca pra falá qui o sangui era meu. Quando nóis chegô, o dono da fazendo de la de fora começo a fala as palavras esquisita qui so ele intendi. Eu só intendi a ora qui ele falô: trais us homi la. E o homi tava bravo qui neim touro amarrado e foi esbravejando com nóis: "-Purque tem pêlo de cachorro junto destas tora? Cadê o meu pudi qui eu vi ele indo cum céis e qui...." e falô cuspindo mais coisa que ninguém intendia."

"Ah, já qui lascô de veis e eu vendo o Antoin delegando nóis com aquela cara de cagado aí eu falei duma veis que se nóis morresse qui morresse igual homi: oh, nóis tava lá pegando as tora, aí caiu uma tora no tal de pudi que ficou igual leite pastoso e eu achei foi é bom! Num foi de querer, qui eu vim cá trabaiá e agora eu já vô é parti. Vamu ô Antoin, fecha logo essa torneira de tráis sinão cê vai tê um dilurimento aí e vai é cagá na sala. Aí eu dei um passo pra frente e voltei na hora pra dá um biliscão mas foi com gosto na zureia daquele mulequi do Vitin. Qui se nois morresse ali ao menos um gosto eu teria. Juntamo a tropa, num tive nem coragem de zoiá a Ana Maria que chorava, subi o lombo do cavalo e fui-me embora. Só ouvi o omi resmungando uns treco difici de entendê e falei: -agora é a hora! Deve tê pegado a garrucha ou o facão!"

"Quando nois tava saindo de perto da casa veio a purcaria do cachorro latindo com o cavalo. Uai? resulcitou? É cão do capeta? Será qui nem o capeta quis ele lá? Aí eu num sabia se era milagre ou disgraça. O meu companheiro que parecia tá cagado agora já tava até fedendo dispois dessa visão. A Dona Critéria tava na janela e falô: "-ô Pereira, eu ví o sinhô falando que matô o cachorro do patrão, mas eu acho qui o sinho matô foi o irmãosinho do pudi e é da fazenda do visinho. Agora o sinhô vai ter qui í lá ispricá mas eu já vô avisando: ele é mais nervoso qui o meu marido." Ahhhhh mais aí quem se cagô foi eu. Eu saí dalí a galope e nunca mais pisei naquelas banda. Ha ha ha ha."

Assim terminou a história do "Seu" Pereira, em momentos cada vez mais difíceis de se ver hoje em dia, mas que valem ouro; netos atentos a avós e não em computadores.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O soldado Vírus




Luiz Sanches

-Muito bem rapaz! Em pé! Prepare-se para as minhas instruções! Você nasceu a dois segundos atrás e já é rapaz pronto para a guerra! Você é um vírus da gripe! Estamos recrutando homens para a grande batalha nos pulmões. - Diz o enfurecido general da gripe, condecorado por ser herdeiro de uma família que há dois dias consegue com força total deixar o hospedeiro de cama.
-Mas general, eu quero me casar e ter filhos. Daqui a cinco segundos terei maturidade para isso. Minha vida é muito curta para ficar brigando! - Diz o soldado recém chegado ao mundo.
-Nada disso soldado! Já vivi muito tempo nesta célula e sei que isso é o melhor para você! Junte suas armas! Temos bomba de efeito moral que provoca cansaço, metralhadora de espirro e chicote de dor no corpo. Sua função é dominar esse corpo hospedeiro! Este corpo é seu, tome-o lutando até o fim. Não podemos aceitar que nenhuma outra bactéria ou vírus tome conta desse hospedeiro! Somos os únicos e legítimos donos desse corpo! Somos a única raça que deve existir!
-Mas general, esse hospedeiro é muito grande. Porque não vivemos felizes encubados em um órgão qualquer, sem atacá-lo? Pra mim não importa se existem outros vírus, podemos todos viver em paz!
-Deixe de asneira! Você nasceu em uma garganta, por isso é um garganteiro! Honre o seu órgão, que é o melhor que existe e vá lutar na batalha de dominação dos pulmões!
-Eu não acho que a Garganta é o melhor órgão que existe só porque nasci aqui, existem tantos outros com vírus diferentes que tem tanta coisa para nos mostrar.
-O que é isso soldado?!? Nós somos a única espécie de vírus que pode trazer a paz a este lugar, somos a única espécie inteligente, somos o orgulho da natureza, os seres mais bem feitos e completos que existem!
-Nós somos completos sendo acelulares?  Somos tão pequenos...
-Pequenos soldado? Pequenos? Não diga mais asneiras! Olha o seu tamanho, veja o quanto é grande! Pequenos são os átomos que vemos em microscópios! Nós somos enormes!
Chega o renomado cientista Gripalisom. Respeitado, vive a mais de cinco minutos: é uma lenda viva! Gripalisom informa ao general: "Senhor, descobrimos que o hospedeiro não é quadrado, que o quarto e a cama não andam em volta do hospedeiro, é ele que anda e que existem inúmeros outros hospedeiros na casa".
-Ótimo! Iremos dominar todos os hospedeiros da casa e quem sabe do quarteirão! - Fala o general sonhador, com lágrimas nos olhos. - Existe mesmo um quarteirão com casas, não existe?
-Ah... bom... ainda não sabemos General. -Responde Gripalisom confuso. -Senhor, também descobrimos que se ganharmos a guerra mataremos o hospedeiro e com isso morremos todos juntos!
-Então vencer a guerra não significa sair ganhado general? -pergunta o soldado indignado. Sem esperar resposta do general, o soldado solta a voz a todos os outros vírus que por ali rondam:
-Todos esses anticorpos são porque nós fizemos dores no corpo do hospedeiro e sujamos de toxinas seus rios limpos de sangue. Isso é uma defesa natural do hospedeiro. Este corpo irá ser novamente o que era depois que a gripe for erradicada! Ele foi destruído e maltratado, agora está se revoltando contra nós! Poderíamos ter vivido aqui pacificamente e por longo tempo, mas a exploração dos seus órgãos foi feita de forma inconsequente e agora sofremos a sua revolta. Esse superaquecimento global da febre é só uma das coisas que vai nos matar e já é tarde demais. Crescemos desenfreadamente em bilhões e achamos que poderíamos nos alimentar eternamente sem dar tempo para que o hospedeiro pudesse se renovar! Nós achávamos que éramos os únicos seres que tinham direito de viver sem respeitar o direito dos outros seres. Somos minúsculos e nos sentimos grandes. Vamos sofrer as consequências!
-Os anticorpos estão chegando!!! Os anticorpos estão chegando!!! - Diz um vírus correndo temeroso. - Abandonar o hospedeiro!!! Abandonar o hospedeiro!!! Todos para estibordo! Iremos sair no próximo espirro rumo a um novo hospedeiro.
Todos se juntam e são expelidos no último espirro antes da melhora do hospedeiro. Os que ficaram encontraram um ambiente hostil que impossibilitava a vida, fruto do seu ataque desenfreado e impensado ao hospedeiro. Os que foram expelidos viajam agora no espaço, a deriva, sem certeza de um rumo, com esperança de encontrar um novo hospedeiro para poderem dominar e colocar de cama.