terça-feira, 20 de novembro de 2012

Pedaços de papel



Luiz Sanches

Vitor, 56 anos, casado, três filhos, moreno, sem camisa, catador de papel, sofredor e feliz.
Jocivaldo, não importa o que ele é ou faz; é somente o coadjuvante.
Tem também a polícia, mas eles só aparecem depois.
A Claudete vinha pela esquina ruma a sua casa. O Vitor vinha do rumo da casa da Claudete para a esquina. O Jocivaldo não importa aonde estava, ele é somente o coadjuvante, eu já disse! A policia? Já vou contar!
Pois então. A Claudete avistou o Vitor de longe catando os seus papeis e logo ela se apavorou, pois o Vitor poderia assalta-la, pensava Claudete. Chiquerérrima como anda, estava com colar, brincos e pulseiras de ouro. Não há outro caminho, tinha que passar pelo Vitor, na rua escura, sem ninguém, para chegar em casa. Outro poderia disser: “então porque não volta ou esconde o ouro”. Não! Eu estou contando a história e ela tem que passar pelo vitor! Que coisa!
Então, voltando: não que o Vitor se tratasse de qualquer ameaça eminente, mas os preconceitos da Claudete a ameaçavam ferozmente. Logo o coração, segurado pela garganta, contorcionava-se a cada passo ao encontro do Vitor, que nem estava dando bola para a Claudete. Paços apertados, Claudete no momento do encontro passa raspando pelo Vitor, quase gritando de medo, enquanto juntava as presas algumas pulseiras e as guardava no bolso.
-Dona! Oh Dona! Dona!!! –repetia Vitor para a Claudete, que apavorada fingia que não era com ela e apertava mais o paço. Tinha medo de parar e ser assaltada, mas o catador de papel logo chegou ao seu lado com uma das pulseiras da Claudete na mão. Como tinha conseguido rouba-la tão rápido? Claudete não esperou ser violentada e foi logo dizendo com as pernas bambas: “toma moço, pode levar, não precisa fazer nada comigo!”. E a policia nessa hora? E o Jocivaldo? O Jocivaldo não importa, mas a policia dobrava a esquina neste instante.
-O senhor aí! Oh vagabundo! Mãos para cima!
Vitor, sem obedecer, questiona:
-Não moço! Eu “to” é devolvendo para ela. Não sou ladrão não! Sou trabalhador, tenho três filhos e...
E repentinamente toma um tapa do policial, o catador sem camisa, que logo ouviu o ouvido tinintar um “zum zum zum”. “Você está achando que eu sou trouxa é?” –responde logo o policial. E o Jocilvaldo? Já disse que não importa! Deixa eu continuar a história...
-Ai que bom que o senhor apareceu. Ai... que bom... –Dizia Claudete, bamba, quase urinando nas próprias causas.
-Eu não fiz nada! Nunca na minha vida eu roubei! Nunca! Eu vi que ela deixar cair o bracelete e fui devolver. Sou honesto! –Vitor se defendia e agora o amedrontado era ele.
-Olha policial, eu vi tudo, este senhor (o Vitor) não roubou, a mulher ai deixou cair a peça. –dizia do nada um jovem que veio do outro lado da rua correndo: é Jocivaldo, vinte e três anos, solteiro, “boa pinta”, está estudando para passar no vestibular, caçula da família e adora jogar xadrez. É o salvador do injustiçado Vitor e deixou de ser o coadjuvante desta história... ufa, finalmente né?
-É verdade senhora? Pergunta intrigado o policial.
Claudete toma fôlego: “nossa, não sei”. Jocivaldo defende mais ao Vitor: “ele anunciou assalto? A senhora é que ficou com medo à toa!”
-Ai... é verdade! Ai moço (Vitor), desculpa, nossa, que vergonha.
Agora vem a parte interessante da história, continue lendo, não saia daí:
O policial solta o catador honesto. Faz as suas recomendações de que tome cuidado e vai embora. O tapa que Vitor levou ficou por isso mesmo. Vitor, humilhado, se vira para a Claudete:
-Eu nunca roubei na minha vida! Sou pobre, nasci pobre e vou morrer pobre. Não sei ler nem escrever, mas uma coisa que aprendi é seguir o que os meus pais me ensinaram: a ser homem! É o que eu ensino aos meus três filhos. Nunca roubem, podem passar fome, mas não precisam disso. Eu as vezes não tenho o de comer, mas também não tenho muito o que me preocupar. Os ricos tem tudo e se preocupam com tudo, pois podem lhes roubar as únicas coisas que possuem. Eu vivo bem e tranquilo, sem preocupações com o amanhã. Nós somos pobres, mas descobrimos a felicidade nas pequenas coisas. Sou feliz com a minha esposa e filhos e não preciso de muito para viver. Os ricos precisam acrescentar mais coisas dos shoppings para preencher o que lhes faltam e nunca estão satisfeitos, porque felicidade não se compra. As pessoas perdem muito tempo da vida se importando com o material e morrem sem se tornar felizes no simples, e não conseguem cumprir com o objetivo principal da vida, que é ser feliz.
Claudete, amargurada, em casa, um tempo depois deste ocorrido, pensa nas palavras de Vitor. Questiona se ele realmente é feliz. Talvez esteja neste momento, sem muito o que comer, mas rindo com os filhos, e ela, sem um amigo sequer.
Assim termina essa história rápida. Ah! Já ia me esquecendo: o Jocilvaldo passou no vestibular e virou o orgulho da família!

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Poemas, versos e citações


 
Essas são citações, versos e poemas românticos que fiz a algum tempo. Você pode copiar e mandar a sua namorada (o), desde que cite a fonte!


Abrir-se ao novo
Desencontrar-se com o medo do recomeço. Desenganar-se que a desilusão pode tornar-se superior. Dar o braço a torcer e torcer que o abraço envolva e comova. Desatar o leão que ruge. Permitir a alma sobrevir de frenesi e agitação. Deixar que o peito arda, o coração bata e o estômago doa.
Respirar, perfume; observar, beleza; degustar, beijos; apalpar, curvas; Desentupir, receios; descongelar, paixão; conjecturar, união; amanhecer, novo.
 Luiz Sanches

Sabores femininos
Existe mulher que é um doce. De manhã te dá o meu da boca. Tem uma pele de pêssego. À tarde lhe salga a relação. À noite lhe apimenta a cama. Se esta é a sua, guarde em local livre de insetos, pois com tantos ingredientes é difícil não agradar a todos os gostos.
Luiz Sanches

Homens rudes
            Sabe que eu adoro homens rudes, mandões, machistas e que gostam de bar copo sujo? E sabe por quê? Porque eles maltratam as mulheres, não as respeitam e as fazem ver que todo homem é igual. Aí eu apareço e rapidinho elas percebem que eu sou a exceção.
Luiz Sanches


Sintomas de uma doença
Um dia você pode acordar e perceber que está doente.  Os sintomas são: o peito continuar quente, mesmo quando não se está abraçando alguém. Não entender a última coisa dita, porque o pensamento estava longe. Quando alguém gritar com você, não sentir a necessidade de gritar de volta. Deixar a todo instante as coisas caírem no chão sem querer. Acordar de noite sem motivo. Mãos estão molhadas e a boca seca, estar apressado, mas não tem aonde ir.
Quando você perceber isso, saberá que a única pessoa que pode te curar é aquela que você a encontra sem querer na rua, olha de novo e percebe que não é ela.
Luiz Sanches
 
Verso do avesso ao reverso
O triunfo não se confundiu e abastou-me de imediato. Trás-me ao âmago esta do sorriso evidente. Teu néctar ainda escorre em meus lábios. Teu perfume não se extraviou das minhas narinas. De súbito o júbilo convence. Minha pele pode e pede pela peleja que nos cabe e já percebe a saudade que apela no apelo que acabe. A estrada estragada converge. As mãos em contramão se encaixam sólido como peça de quebra cabeça e despeça da solidão.
 Às vezes me perguntam de onde vem a inspiração. Talvez o meu coração não tenha nada de melhor em relação aos outros; só está sendo visitado por quem é a melhor.
Luiz Sanches


Vem para mim outra vez!
Vontade de estar com você
estar do teu lado, te revê!
Sentir o seu abraço
formar um laço

Sentir mais uma vez o teu perfume
não me prive deste costume!
Sabes que eu preciso
me encantar com o teu sorriso

Trás-me a boca de encontro a minha
e dá-me a mão enquanto caminha
Não deixa o meu coração tão sozinho
que eu sou teu vizinho

Quero brincar com o teu cabelo
Então, atenda meu apelo
Vem outra vez e me saúde
medicar a minha saúde
Que a saudade já está no ar,
não deixe o tempo se acabar
Luiz Sanches


Desperta coragem
Se você deixar a luz acessa, pode ser que durma sem medo. Se você sentir Deus, pode atravessar uma floresta. E se você olhar nos olhos, conseguirá dizer eu te amo sem fraquejar.
Luiz Sanches

terça-feira, 5 de junho de 2012

Dou-lhe uma oportunidade




Luiz Sanches

Augusto é um homem de negócios. Batalhou como cão em sua juventude e agora desfruta de um emprego fixo, rentável e promissor como gerente de uma grande indústria têxtil. Conheceu boa parte do Brasil durante viagens de negócios e numa destas viagens foi apresentado a Isabel, com quem se casou e tem um casal de filhos. Os filhos estudaram em boa escola e logo aprenderam de negócios. O mais velho, fez administração e com vinte anos de idade já exercia a profissão em uma pequena empresa, mas de renome. Como na família de Augusto a grande maioria teve que se contentar com subempregos, Augusto e seus filhos são vistos por estes como orgulhosos, sortudos e seu filho, como protegido do papai, que lhe deu um emprego de "mão beijada", o que não é verdade, já que seu filho adquiriu o emprego por conta própria.
Augusto sabendo da dificuldade financeira do seu irmão César aproveita outra viagem de negócios para visitá-lo e oferecer emprego aos seus filhos. Ao chegar a sua casa, como sempre, César reclama da vida difícil e pede um dinheirinho emprestado, algo como uns dois mil reais. E como sempre também, Augusto nunca empresta, mas oferece uma oportunidade de estudo a César e seus dois filhos. César reclama de já estar velho demais e não ter paciência para estudar e que seus filhos não precisam de estudo, precisam sim é de um bom emprego e que remunere bem. Augusto, já aguardando esta resposta, chama os rapazes, de vinte e um e dezoitos anos e lhes oferece primeiramente estudo. Os rapazes só querem saber de computador e baladas. Augusto oferece emprego, mas nem sequer se preocupam em dar prosseguimento à conversa. César reprime os rapazes que apelam dizendo ao pai que este deve prover o sustento da família e não eles. Augusto, sem sucesso, resolve passear algumas vezes na cidade com os rapazes e aos poucos tenta os convencer do emprego ou do estudo, mas relutam e aceitam somente que o tio lhes pague a cerveja.
Numa das saídas à cidade, porém desta vez sozinho, Augusto vai a uma pizzaria ao ar livre e repentinamente vem ao seu encontro uma moça vendendo flor, bonita, maltrapilha e esfomeada. Claro que Augusto não tinha a quem oferecer a flor e logo descartou a compra, mas a moça perguntou: "o senhor vai comer o resto da pizza? É que estou com fome!". Sem entender ao certo o que comandou a Augusto, este diz à moça que pode se assentar e comer. Sem vergonha para pedir, mas em excesso para se assentar, a moça come em pé e sabe-se lá porque, permanece comendo ali. Logo sai, profundamente agradecida e apresada para vender um mínimo de flores nesta noite. Augusto observa e reflete no que é a vida. Como pode a vida amargurar a quem deseja lutar e abastar a quem pouco se importa. Reflete no que ele pode oferecer a alguém desconhecido. Porque insistir em ajudar a quem não quer? Porque é parente e mesmo não tendo retorno financeiro, terá prestígio e admiração? Sentir-se-á antes os seus como o provedor? Vale a pena? Alcançará estes objetivos inúteis? Augusto se levanta rumo à moça e lhe pergunta se quer emprego. O que ele não esperava era dele ser surpreendido. A moça é uma repórter disfarçada fazendo uma matéria sobre moradores de rua. Augusto apareceu na televisão. A família toda o viu como um bem feitor.
Seus sobrinhos, por outro lado, ficaram chateados de não serem convidados para aparecerem neste dia. Augusto volta para São Paulo como o tio que se esqueceu dos sobrinhos e seu irmão não lhe dirigiu mais a palavra, que o considerou como orgulhoso por querer aparecer sozinho na televisão: "porque não chamou meus filhos neste dia, seria tão bom para eles"... reclamou sempre deste este dia em diante César, pelas costas de Augusto.

sábado, 12 de maio de 2012

Mãe de luta, mãe de coração




Luiz Sanches

Selma é uma mulher sofrida e batalhadora, assim como a maioria das mulheres de bem. Veio da cidade do interior para a cidade do Rio de Janeiro com a promessa de vida nova, junto com única filha de cinco anos de idade, na época. Selma trabalha de atendente em uma loja de cosméticos, gastando algo como nove ou dez horas por dia no trabalho, umas duas no transito de casa ao trabalho, outras duas arrumando casa ou fazendo janta e sabe-se lá quantas dormindo, para logo levantar e se preparar para a sua labuta diária. Sua filha, Jéssica, com treze anos de idade, se não é a filha legítima do capeta, é adotada por ele. Jéssica, ou paninha, como é conhecida pela “turma do mal”, só aprendeu coisa que não presta nesta vida. Some de casa por dias, só aparecendo para comer algo ou roubar o que ainda sobra da pobre mãe batalhadora, para trocar por um sem número de tipos de drogas. Já foi presa, já apanhou, e por falar em apanhou, sua mãe Selma nem sabe quantas vezes curou machucados da “coitadinha da querida filhinha”, “que até é boa pessoa, mas o seu problema são as companhias”. A única coisa que recebe de gratidão da “filhinha” é a má resposta e o desrespeito, nos dias que aparece em casa. Selma sem saber o que fazer e necessitando trabalhar, deixou por vezes Jéssica aos cuidados do marido, por quem se casou alguns anos depois de vir ao Rio de Janeiro, já que o pai de Jéssica ficou no interior com outra qualquer. Sem sucesso, seu marido perdeu a cabeça em quantas vezes tentou segurar os ânimos explosivos da “filhinha querida” e quantas vezes brigou com Selma por conta das mal criações dela, e, por fim, se separou de Selma.
Certo dia, Jéssica, com seu namoradinho de merda, que só sabia lhe explorar para comprar droga, resolveram realizar um assalto mal planejado e terminaram alvejados por três tiros a queima roupa, cada um. Selma perdeu a vida junto com a filha. A depressão a tomou por inteira, toda e cada uma de suas células. A certeza de não poder concertar a filha a tempo, mesmo se esforçando, lhe travava a mente. Selma perdeu o emprego e ganhou mais dívidas. Nada em sua vida fazia mais sentido. Mesmo a filha sendo a pior filha do mundo, era sua filha e mãe, é mãe. Ninguém compreende o amor de mãe. Este é o amor mais puro que existe; incondicional, natural, feliz, que agrupa tudo o que há de mais profundo e carinhoso em qualquer emoção humana e transforma essa emoção em filhos. Mãe cria um filho por sabedoria que livro não ensina, com amor que nem a bíblia sabe exprimir, com dedicação que nem o melhor amante realiza por alguém. Imersa nesse dor, a maior dor que um ser humano pode suportar, Selma após uns dois anos sai de sua depressão e recomeça a vida. Obvio que os visinhos agradeceram aos céus pela ida da pequena demônio aos infernos, porém, para Selma, só a “filhinha querida” poderia suprir sua saudade. E num dia desses, saindo para conhecer um novo amor, num bar copo sujo, conhece um rapaz “meio bobão” e bebida vai, saideira que nunca sai, Selma teve uma idéia maluca: levar esse rapaz já bêbado para a cama, transar sem camisinha, para tentar ter outra filha. A noite acabou, o rapaz ela nunca mais viu, o tempo passou e o teste revelou: gravidez! Sua idéia mirabolante irá gerar uma nova vida, sem marido, com dívidas aos montes, mãe solteira e mais: no pré-natal descobre que é menina (que felicidade), com síndrome de Down. Selma quase retira a própria vida junto ao bebê que vai nascer. Só não tirou, porque descobriu amizades onde nem pensava que existiriam. No seu tempo de depressão, se enclausurou, ninguém soube de sua dor, mas na gravidez descobriu amizades que se uniram em prol da vida que vai nascer. Recebeu ajuda de parentes que nem se lembrava, desconhecidos apareceram e criaram amizades fortes. Descobriu que existe mais gente pronta para ajudar que imaginava.
Os anos se seguiram e Selma cuida de sua filha e trabalha. O que nem imaginava é que o mesmo ventre que gerou uma diaba, gerou uma anja. Célia, sua nova filhinha querida, é um doce de pessoa, sabe carinhar, lhe traz café na cama, se tornou o xodó dos visinhos e experta, ao seu modo. Célia aprendeu a cuidar das outras crianças da creche ao lado de sua casa, ganha o seu dinheiro e o entrega todo a sua mãe, para ajudar nas dívidas de casa. Fez comercial num programa de televisão, salvou um cachorro atropelado na rua, que ninguém se importava, virou companhia dos vovôs solitários e num dia desses, entregou uma rosa à mãe, do nada, dizendo que a ama, que é a melhor mãe do mundo.
Não importa quem são os filhos. Amor de mãe é independente. Mulher que é mãe é o ser mais avançado que existe porque faz tudo, mesmo por quem não merece. Mãe é o ser humano mais forte que existe, porque suporta o que homem nenhum, nem na guerra, suportaria. E preconceito é grande onde a cabeça é pequena. Porque como uma pessoa com síndrome consegue amar mais do que quem possui tudo na mão e não valoriza?

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cíntia, um fantasma fruto do medo




Luiz Sanches
 
Cíntia é mais das "gentes" jogada fora: foi deixada no hospital que nasceu, entregue a própria sorte. Viveu dez anos em um orfanato, carecia todas as semanas do abraço de novos pais que nunca chegaram. Sempre inibida, calada e depressiva, perdeu a infância e os brinquedos que ganhava para qualquer menina que lhe tomasse. Quando aos onze anos, fugiu junto com outras meninas, pulando o muro que caiu devido a uma forte chuva. Não era do seu feitio escapulir, mas não pôde dizer não as amigas que lhe forçavam a fugir também. Pior foi a vida na rua, muito diferente e incrivelmente mais cruel que a vida encarcerada do orfanato, mas não tinha coragem de retornar ao abrigo certo. Com o tempo, as amigas que lhe obrigaram a fugir, uma a uma, foram tomando o seu rumo e Cíntia, num dos únicos lances que tomou partido e coragem na própria vida, procurou um trabalho de doméstica, onde aprendeu todos os serviços caseiros.
Cíntia por vezes chora na noite, baixinho, para ninguém ouvir. Ela sente uma dor no peito inexplicável, uma euforia, vontade de fazer algo, sair dali, passear, se divertir, falar com alguém e ser ouvida, fazer parte de uma roda de amigos, ganhar um presente de aniversário, algo sim, só o normal que todo mundo faz... Mas não sabe bem o que quer. As mãos tremem, o relógio marca duas da manhã, o sono a derruba de surpresa e no dia seguinte tudo foi esquecido. É hora de voltar ao trabalho. Ela sente que nasceu para não ter direito a nada. O medo de ninguém querer a sua amizade prevalece. É o medo de ter uma grande amiga e ela a decepcionar, de alguém a ridicularizar por ser empregada, de não saber conversar direito... Tantos medos... Ela queria participar, só um pouquinho, como se fizesse parte "destas gentes", como se hoje fosse gente como essa gente, como se pudesse falar também das coisas dos cosmos, do livro de direito ou como se soubesse algo da literatura brasileira. Se lhe perguntam algo, até do que sabe, logo sente algo na garganta lhe prender as palavras à boca e no preciso momento de demonstrar que sabe algo, não fala, como se alguém lhe apertasse a garganta ou lhe comece as palavras. Lógico, só é mandada, sempre é vista como menor que os outros. Ser vista como pequena é a visão dela também, não existe aí muito esforço ou sábias formas de mudar esse preconceito.
Quando ela entra no chuveiro, canta, como aprendeu na novela. Só que canta baixinho, aproveitando o barulho da água que bate no chão para esconder a sua voz, já que não acredita que tem voz bonita. Cantar no chuveiro é a sua festa particular, que se encerra quando alguém bate na porta a avisando aos berros que está demorando demais no banho. E olha que o seu banho nunca leva mais que uns quinze minutos. Assim é a sua vida de humilhações. Nunca tem direito a nada e não acredita que a sua voz é maravilhosa, que pode lhe tirar dessa vida e a transformar em patroa.
Cíntia já é mulher, mas tem os seus desejos de menina, que ainda não foram satisfeitos, mas ninguém sabe quais são: guarda-os para si. Nunca teve um romance duradouro, pois a vida de doméstica lhe privou de tempo para si. Acredita que jamais irá achar um amor, já que para ela amor é um conto de fadas que só acontece para os patrões. Não é tão bela, mas não é feia e sempre se viu horrível em qualquer espelho, até que passou a odiar espelhos. Não usa xampu ou toma conta de perder a barriguinha que aumenta. Chegou a receber cantadas nas ruas, porém sempre acredita que não se passa de algum tipo de piada.
Ela perdeu a chance de ser uma grande cantora, por medo de quem sabe, ser feliz, se expor, não ser aplaudida ou admirada. Não era bem isso, era medo de na verdade, ela não ser ninguém na vida, só uma sombra que vagueia, pensando que poderia ser gente e acabar ridicularizada por isso. Por mais que lhe elogiassem a voz , não acreditava, tapava os ouvidos e desprendia as palavras de menor valor quanto a sua pessoa. Mas no fundo acreditava... no fundo via algo que dizia que sim. Todo mundo tem um dom, que talvez não seja o que se deseja ter, mas é o que lhe torna especial. Cíntia não tem nada, mas tem uma voz quase à altura de uma Elis Regina. Sua voz lhe daria tudo! E se cala por medo!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Jorge, o chifrudo



 Luiz Sanches

Eu e a Lívia, minha esposa, já não andávamos lá aquele romance a um bom tempo. Tínhamos três filhos e contas para pagar. Por vezes, durante a madrugada, ela falando dormindo, chamava um tal de Ricardo e dizia que Ricardo é forte e musculoso, que Ricardo era homem de verdade, que Ricardo isso, que Ricardo aquilo. Eu não aceitaria um chifre de modo algum, mas não a perguntava quem é o tal Ricardo. Queria pegá-la de surpresa. Se eu achasse esse vagabundo, o mataria com suas próprias tripas... Não, isso é muito violento pra mim... O estrangulava com... Não... Eu brigaria com ele... Não... Ficaria com ciúmes. Isso! Safado!
Peguei o nome de todos que moravam lá perto de casa, inclusive o açougueiro, o pintor, o farmacêutico e ah, nunca confie no cabeleireiro. Nunca confie! Ha alguns que fingem que não gostam de mulher só pra levá-las para o fundo da loja e conversar quietinho. Por isso que eu gosto é daqueles que gostam de homem. Não, espera aí, eu to falando do cabeleireiro. Inclusive, fui pessoalmente saber do cabeleireiro dela e perguntei a atendente:
-Moça, qual o nome do cabeleireiro?
-Qual deles senhor?
Aí eu fui direto, com voz firme e cabeça erguida: -O Ricardo, quero falar com ele agora!
-Senhor, não temos nenhum Ricardo aqui. O senhor quer falar com outra pessoa?
-Han... eu quero falar com aquele grandão ali, do cabelo dourado, que ta fazendo o... ah... aquilo no cabelo da moça.
-Ah sim. Ele está ocupado agora, mas se quiser deixar o seu telefone...
-Quero sim! -Respondi rápido sem deixar a atendente terminar.
-Eu tenho certeza que ele irá te ligar, pois hoje cedo ele estava reclamando que está sozinho a um bom tempo e quer uma pessoa inteligente como o senhor para romance sério.
Esse episódio foi horrível, mas a minha luta para descobrir quem é o safado do Ricardo não parava por aí. Fui ao mecânico. Lá o Serjão me falaria se viu alguma atitude suspeita da Lívia.
-E aí Serjão, tá de boa véi?
-Só cara! Veio trazer aquele carango?
-Não, agora ele ta funcionando direitinho.
-Ah, então ta melhor que você, se é que você me entende, hahaha.
Ele sabe de algo, ele sabe de algo, eu sei que sabe. Pensei irritado.
-Pára de brincadeira e me diz uma coisa. Tipo assim, cê sabe né... Num é que eu tô pensando... Mas vai que... assim, tipo, pode ser que, só uma suposição...
-Fala logo, ó beiço caído!
-É que assim... Você viu a Lívia conversando com um tal de Ricardo aqui?
-Não, porque?
-É que eu to procurando ele. Você sabe de alguém assim forte, musculoso?
-Sei.
Pronto, havira achado o vagabundo!-Pensei.
-Se quiser eu posso te apresentar vários, você gosta dos altos ou dos baixos?
A minha vontade era de socar o Serjão, mas saí de lá direto para a casa da Zeila, amiga da Lívia. Zeila é uma mulher feia até no nome.
-Então você tá ganhado um chifre né? -Dizia ela parecendo que adorava saber da notícia, e continuou: Olha, um homem sem chifre é um homem indefeso, hahaha. Não se preocupe querido, depois de um vem outro! Na cabeça sempre sobra espaço, você vai ver, se não tampar a sua visão, claro, hahahaha.
-Você não vai me ajudar em nada, velha da cara pintada!-Saí de lá xingando nomes que nem me lembro.
-Pintada, mas sem chifre, querido. Opa, cuidado para não bater o chifre na porta... ai, bateu, mas não preocupa querido, se quebrou tem como colocar outro, hahaha.
Foi uma lastima conversar com a Zeila. Em pouco tempo toda a vizinhança já sabia do fato. Cheguei a ganhar um chapéu com chifres no trabalho e me perguntava como eles descobriram? E o pior é que eu era o único sem saber quem é o tal de Ricardo!
Numa noite, acordo eu para tomar água e quando volto está Lívia falando dormindo o nome do Ricardo. Colei o ouvido e ela dizia: "vai, com essa maquiagem, faz isso, Ricardo, vai..." Maquiagem? Ricardo era o maquiador? Estava resolvido! Naquela noite nem dormi, pensando no que iria fazer com esse maquiador safado.
Marquei um horário no salão onde a Lívia maquiava-se e lá tinha um tal de Ricardo. Agora ele vai ver uma coisa! Esperei um pouco e me aparece um homem moreno alto, musculoso e voz grave. Fiquei sem saber o que falar. Dava medo um homem daquele tamanho; se o encarasse numa briga estaria em desvantagem. Desenvolvi uma nova estratégia para conhecê-lo. Disse que queria fazer uma maquiagem e enquanto conversávamos, descobriria o seu rolo com Lívia. Certo é, fiz a maquiagem, tá... fiz... E o Ricardo é até um cara bacana e engraçado, não poderia defrontá-lo. Mas descobri que realmente tinha um rolo com Lívia. Após o ensejo resolvi terminar o casamento com ela e hoje vivo feliz da vida com o Ricardo, amor da minha vida.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Shirlei, a prostituta



 Luiz Sanches

Shirlei é um mulherão, mas não daquelas que se vê na televisão, ela é muito mais que isso! É mulher para ofuscar os olhos. Até as outras mulheres se sentem atraídas por ela. Um espetáculo é pouco: é a oitava maravilha do mundo! Do tipo que você só vê uma ou duas vezes na vida. Cabelos lisos castanhos, boca carnuda, uma marca em local reservado, peitos deslumbrantes e andar de modelo.

O nome Shirlei é artístico, pois ela é prostituta. Mas nem pense em contratá-la facilmente. Não, não... Shirlei só faz um programa por noite e para quem pagar melhor e caro, bem caro! E também nunca aceita um programa com o mesmo homem, salvo em raras exceções, por livre escolha dela mesma. Nestes casos, haja dinheiro para pagar uma revanche. E vou logo avisando: tem que ser muito homem para aguentar uma noite com a Shirlei, insaciável. Se parar no meio do caminho é ela que reclama! Você acha que está pagando para mandar como quer? Nada disso; o pagante só descobre que é ele quem obedece tarde demais.
Se já recebeu convites de namoro, noivado ou casamento? Isso nem se conta! Um em cada esquina, mas até o momento, Shirlei diz esperar pelo homem da vida dela e aí sair dessa vida louca e amarga. Não houve um macho a altura de tanta carne desta estrutura invejável.

Certa noite dois homens que já tiveram a dita de pernoitar com a Shirlei (mas que nunca mais o farão, não por vontade deles, claro) pediram a ela para dormir com um amigo que é quietinho, boa gente, religioso, noivo e virgem, mas "boa pinta". Queriam realizar uma aposta: se o rapaz aguentaria a paquera de uma mulher como a Shrilei, já que ele se diz fiel imutável de sua querida noiva, com casamento marcado. Se ela conseguisse convencer o rapaz, um dos apostadores ganhava a aposta, se não, o outro ganhava e se provava de uma vez por todas que o rapaz, de nome Alfredo, é o maior fiel de todos os tempos. Aposta feita, lá vai Shirlei a oficina do Alfredo, que se encontrava só, no final do expediente, todo limpo e arrumado, nem parecendo um mecânico que se preze. Conversa vai que ela precisava de um mecânico, cantada volta, passada de mão no ombro, olhares entrecortados, conhece os cômodos da oficina e nada! As vezes parecia que ele nem desconfiava das intenções "generosas" da Shirlei. Não deixava Alfredo de falar da beleza e bondade da sua amada Carina com quem deseja se casar, do quanto irá crescer como homem e ter a sua oficina, dos estudos e compromissos importantes, dos valores éticos de uma pessoa e suas poesias, que entreteram a atenção da Shirlei, que até pensou: -"acho que estou pecando com esse rapaz!". Mas aposta feita, é aposta cumprida, sua função ali era provar o rapaz e lá foram novas investidas. O doce rapaz se viu envergonhado, tímido com tanta formosura ao seu encalço. Shrilei apronta: -"eu estou de olho em você a muito tempo, só quero um beijo seu", e leva a conversa sem apresentar suas palavras inesperadas de uma desbocada prostituta. Alfredo retraído e encurralado vai cedendo aos poucos as carícias da Shrilei, que já pensa como pode querer desvirginar um rapaz tão certinho? Alfredo cai na armadinha, já lá pela meia noite e passa a noite em carícias, amassos e beijos ardentes, bem ardentes. As vezes calmos, por hora quase a engolindo. O sexo se torna ininterrupto, madrugada adentro e sem hora para acabar. Alfredo a trata como uma dama, lhe diz poesias guardadas a sete chaves ao pé do ouvido. Nenhum homem tratou a Shrilei como mulher, senão como objeto que se paga, usa e joga fora. Já foi maltratada, agredida e humilhada um sem número de vezes. Essa vida bandida dava-lhe dinheiro, mas lhe fazia valer cada vez menos. Alfredo foi um "gentlemen". Carinhoso, calmo, porém afoito nos momentos de "paixão bruta". A tratou como pessoa, sem saber de sua origem. Para um virgem, mandou muito bem. Imagina quando estiver experiente?

Pelo início da tarde, Shirlei chega em casa com a pulga atrás da orelha: -"como pude fazer isso com um rapaz tão puro?" E como ela gostou de ser tratada como mulher deve ser tratada.

À noite, teve lá seu programa habitual, que nada lhe agradou. Só pensava no Alfredo. Disse aos apostadores quem ganhou a aposta. Quase saíram os dois no tapa: -"eu sabia que o Alfredo não ia aguentar, eu sabia, ganhei a aposta!" Pela manhã, Shirlei foi procurar ao Alfredo, que não lhe deu bola. Dissera que teve uma excelente noite, mas não iria terminar o noivado. Recomendou que procurasse outro, a não ser que ela declarasse que estava apaixonada de verdade por ele. Shirlei ficou arrasada, nunca se apaixonou. Trabalho é trabalho. Noite vai, noite vem e ela sendo humilhada por um cafajeste qualquer. Não esquecera a Alfredo e correu aos seus braços, não disse que estava apaixonada, mas que o amava! E dá-lhe sessão ininterrupta de sexo selvagem, com Shirlei aos pés de Alfredo.

À noite Alfredo, numa mesa de poker, fumando seu charuto cubano, bebendo whisque da melhor qualidade, rodeado de mulheres vagabundas e caras mal encarados, comenta com o seu companheiro de jogo: -"sabe como consegui conquistá-la? A fiz se interessar em mim e a tratei como mulher não importando o que ela é. Mulher gosta é de homem que a trate bem, por isso ninguém conseguiu ficar com ela. Não existe nada disso que mulher gosta de apanhar e que a chamem de vadia... Mandei dois falarem que eu sou virgem e todo certinho. Pois bem, apostei com você que a deixaria apaixonada por mim! Passa o dinheiro que hoje vou gastar com ela!"

quinta-feira, 8 de março de 2012

Seu Adê, o Moribundo



Luiz Sanches


João Adenilson, senhor de idade avançada, lá pelos... han... oitenta... noventa anos ou até mais. Este é o Seu Adê, para os amigos e parentes. Possui nada menos que quinze, eu disse quinze "filhos homi" e "filhas mulé". Cuidou de todos com devoção e amor sofrido no caminho da vida em conjunto com Maria das Dores, falecida a dez anos. Agora chega a vez do Seu Adê. Médico nenhum sabe exatamente do que sofre; é uma dor no peito forte, mas não é nenhuma doença detectada.
Seu Adê é abastado, arrendou três fazendas batalhando ao lado da querida Maria das Dores. Resolve chamar os filhos distantes para dizer aos ouvidos qual é a herança de cada um. Todos os filhos tiveram a mesma criação, mas cada um é um. Seu Adê tem distante a Dorinha, estilista que mora em São Paulo, que não se dá bem com alguns dos irmãos. Já Tiló, como é chamado, pode ser que venha também. Este não aparece desde o enterro da mãe. Tiló e os outros irmãos são como cão e gato. Somente estes que encontraram desavença na pacata casa do Seu Adê, que procurou sempre uma maneira de conciliar, sem sucesso.
A primeira a chegar é a Dorinha, toda emotiva, chorando horrores (a família sabe que é fingimento). Ela se mostra abalada, abraça o pai, reclama que o lençol é feio, que o travesseiro tem que apoiar as costas, que o pai precisa de uma camisa nova, e que isso, que aquilo, mas só manda. Não faz nada. Abraça o pai desconcertada e rapidamente, possivelmente com medo de que a dor no peito do pai lhe possa transmitir. Não demorou em ressaltar o veneno dissimulado pela emoção que a abala: "oh pai querido, o senhor sabe que eu moro longe e não posso ficar sempre com o senhor. Não é porque eu estou distante que mereço menos terras". Claro que os irmãos ouvintes quase se enfurecem que o veneno sorrateiro da loba em pele de cordeiro, mas relevaram em nome da saúde do pai. Seu Adê sorri e exclama:
-Minha filhinha querida, "ocê" é um orgulho! "Se formou", "tá" bem de vida. Eu queria tanto ter um neto "docê"... "Cê" vai "ficá" de herança com a casa, "tá" bom?
Dorinha agradece, sem graça, meio sorriso, porque esperava mais que isso e diz que tem compromisso em São Paulo. Os irmãos questionam como o Seu Adê consegue aguentar tanta falsidade, que responde:
-Porque "os pai" tem que aprender a ver o que há de "mió" nos "fios", sem ficar xingando o seu mal. Existe muita coisa boa em cada um no mundo. "Inté" um ladrão faz "coisas boa" para alguém. "Inté" um ladrão faz falta para alguém. O que ela faz é muito "pititin" para eu não querer ela sempre "pertin" de mim.
Uma hora após a saída da Dorinha, Tiló, vindo da longa viajem, atravessa a porta do quarto do Seu Adê apressadamente e logo exclama chorando -"Pai..." - a emoção foi maior que poderia suportar - "eu só percebi o quanto gosto do senhor depois que recebi o telefonema. Só vi o quanto o senhor faz falta na minha vida agora e.... e.... eu... não... perder... eu..." A emoção o tomou. Nunca se vira a Tiló tão emocionado. Nunca chorou tão forte. Todos o seguiram nas lagrimas. Neste momento, todos os irmãos eram um só! As desavenças não mais existiam. Ficou junto ao pai durante toda a tarde. Palavras não são o seu forte, mas a mão do pai segurava forte. Precisava voltar a sua cidade e foi envolto em lágrimas e nem quis saber da herança.
Tininha, a caçula, se aproxima do pai nas últimas e diz:
-Pai, os dois já foram embora! Que dia feliz para o senhor, hein? Viu os filhos que nunca te visitam.
Seu Adê levanta da cama e quer ir para a roça trabalhar a todo vapor.
-É minha "fia"! "Fingí" que "tá" doente não é fácil. Ano "qui" vem "cês" tem que inventar uma doença com médico e tudo. Agora vamos "trabaiá" que se fica parado "nois" morre!

sexta-feira, 2 de março de 2012

Seu Alcides, o presidente da empresa


 Luiz Sanches


Quando fui trabalhar de secretária do Seu Alcides, presidente de uma empresa de transportes, não sabia que conheceria um dos homens mais importantes da minha vida. Seu Alcides é um homem careca, de boa aparência, baixinho, um pouco tímido às vezes e falador demais por outras. Nunca o vi gritar com um só funcionário. Tinha esposa e filhos e uma casa na praia. Nem sempre tudo foi flores para o Seu Alcides, que nasceu no interior da Bahia, numa humilde casa. Seu pai nunca conheceu e é o filho do meio entre seis irmãos. O futuro não lhe reservava grandes esperanças. Deveria lutar com unhas e dentes para ser alguém no meio da multidão e foi o que ele fez. Não tem vergonha alguma em dizer que só fez um supletivo aos quase trinta anos, quando aprendeu a ler e escrever. Mesmo assim se tornou o presidente da empresa que foi contratado inicialmente como caminhoneiro. Superou a inveja dos mais qualificados e se adaptou rapidamente a cada posto que exercesse, até tornar-se presidente.
Pregava dizeres nas paredes como: se fizeres o que gosta não terá que trabalhar um só dia em tua vida. Autor Warren Buffet", "Você é o maior patrimônio desta empresa", "Doe um sorriso e ganhe três", "Divirta-se, esse é o seu trabalho" e muitos outros.
Não era difícil entender porque um caminhoneiro subira ao posto de presidente: sempre que via uma sujeira, tratava de limpar ele mesmo e não se importa se a faxineira está à toa; sempre traz novas idéias para melhorar a logística da empresa ou para facilitar o trabalho; é o maior defensor de um funcionário, quando este está certo vai até contra o patrão; mas o que mais lhe ressalta, é a competência no que faz e a capacidade de resolver conflitos. Num dia desses, fui lhe perguntar como perdoar uma grande grosseria que recebi de um funcionário.
-"Oh, minha flor", assim me chamava, "Você não deve pensar em perdoar." Respondeu Seu Alcides.
-"Mas como não Seu Alcides?" -Indaguei perplexa.
-"Pense em entendê-lo. Coloque-se no lugar dele. Compreenda porque ele fez o que fez. É natural que você se sinta mal e com sede de vingança, mas não é correto que permaneça por muito tempo com esse sentimento. Reflita bastante e veja onde foi que ele errou, isso se ele errou ou só falou o que você precisava, mas não queria escutar. E o principal: veja onde foi que você errou e como se conciliar com ele. Eu entendo que não se deve perdoar porque disseram que você tem que fazer isso. Entendo que o perdão é como o trabalho, que tem como consequência o salário; se você compreende o outro a consequência é o perdão. Aí é fácil perdoar... É natural e sem guardar mágoas."
-"E se o que ele fez me magoou muito?"
-"Aí, minha flor, a sua compreensão terá que ser muito maior, o que te tornará uma pessoa muito mais sensata."
Certo dia lhe perguntei como ascendeu na empresa, e sua resposta foi -" Para crescer, Aprendi que preciso ouvir. Ouvir é uma arte que pouca gente sabe exercer. Aprendi que não adianta ouvir sem memória. A memória permite que eu não repita um erro. Aprendi que não adianta memória sem reflexão, que permite que eu possa entender onde errei e como acertar. Aprendi que não adianta reflexão sem ação, porque seria como ter uma biblioteca e ficar durante o dia vendo televisão. Tenho funcionários que agem como se fossem portadores de deficiência física. Fica um mudo do lado de um cego: o mudo vê e não fala nada, o cego ouve mas não vê nada. Eles que se auto limitam e nunca avançam por isso. Só não os mando embora porque eu sou a ação, e eles, como se executa a ação. Todos precisamos de todos. Eu cresci nesta empresa porque acreditei em mim mesmo."
Infelizmente, Seu Alcides faleceu ano passado vítima do coração. Compreendi o quanto de valor tem um homem simples. A empresa perdeu muito dinheiro nos meses seguintes ao seu falecimento, não só porque perdeu um presidente, mas porque perdeu um pai.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Mulheres do imaginário

 
Luiz Sanches


Quando criança, depois daquele tempo "que menino não brinca com menina", sonhava que minha futura esposa seria como a Rapunzel, eu mataria um dragão na frente dela e a salvaria do Esqueleto, inimigo do He-Man. A maior sensação que conhecia, era ver a Priscila ou mandar uma carta de admirador secreto a ela. Hoje nem lembro como é a sua feição.
Quando pré-adolescente, logo depois de começar a escolher minhas roupas, descobri o beijo. Aí o Vitor, que era meu eterno melhor amigo, me apresentou a Gabriela. Foi com ela que tive o primeiro beijo. Esta era a maior sensação que jamais sentira. Foi ruim bater um dente no outro, mas foi bom ficar o dia todo pensando nela. Achava que iríamos casar e viver felizes para sempre, mas os nossos encontros só duraram até o fim das férias e festas de São João. Aí conheci a Marcinha quando brincávamos num lote vago. Combinamos de nos encontrar, quando a mãe dela fosse levá-la a sorveteria. Todas as vezes que saímos a Marcinha dizia que ia me dar um beijo na hora de ir embora, mas nunca deu, até o dia que disse que não estávamos mais namorando. Quase morri por ela. Pensei em suicidar tomando escondido toda a pinga do meu pai. Só consegui tomar meio gole e ficar um mês de castigo.
Já na adolescência, depois que precisava passar limão com bicarbonato debaixo do braço para não produzir odor, conheci a Paula. Tinha a turma do Marcão que era legal e faziam coisas como chegar tardão em casa. Tinha um que um dia chegou quase dez e meia. Fiquei sabendo que na verdade estava perdido e a mãe dele já tinha chamado à polícia, mas esta não era a versão oficial. A Paula era muito cobiçada por todos porque naquele tempo era a única que não precisava pedir permissão para sair de casa para onde quisesse ir e fumava. Com ela, descobri o escurinho e a "mão boba". Foi a primeira vez que toquei nos seios de uma mulher, mas não sabia bem o que fazer. Ela pedia que eu me mexesse mais, que fosse mais ousado, mas não tinha a menor idéia do que isso significava. Senti algo apertando e queimando o peito, uma inquietação insuportável, uma vontade louca de fazer sei lá o que. Era a maior sensação que conhecia. Pena que durou só uma semana... Durou até o dia que ela, junto com a turma do Marcão, caçoavam-me de achar que ela iria ficar comigo. Chorei, sonhei com planos de matar o Marcão e prometi nunca mais querer beijar outra menina. A promessa durou dois longos dias. Quanto ao Vitor, que me deu muita força e foi um amigão, mais tarde brigamos pelo amor da Jéssica, que nunca deu atenção pra nenhum de nós dois. Hoje, gostaria de saber por onde anda meu amigo. Anos mais tarde vi o Marcão na rua e perguntei pela Paula: estava grávida do terceiro filho com um outro cara, teve um problema no pulmão por culpa dos cigarros e reclamava que se sentia muito sozinha. Até hoje eu e o Marcão somos amigos. Bebemos uma cerveja e conversamos sobre mulheres.
No início da juventude, depois que comecei a beber, passar mal e mentir em casa, namorei e separei da Graziela, da Eunice e da Clara. Conheci a Helena num curso de violão. No mesmo curso tinha o Fernando, que me falou coisas horríveis da Helena e desapontado, me afastei dela. Hoje ela é administradora de uma empresa e se casou com o Fernando. Depois trabalhei e estudei... Cresci. Achava que já havia descoberto todas as sensações da vida.
Quando já era adulto, depois de me queixar de dor nas pernas e coluna, conheci a Carina, numa loja; estava irritado por ter comprado uma televisão que não funcionava, chovia e estava com contas atrasadas. Ela me atendeu tão bem que quase levei a televisão de volta. Após um ano e meio de namoro voltei a sonhar. Sonhava que casaríamos, teríamos só um filho, que faria o jantar e um cafuné na minha cabeça, domingo à noite. Hoje, estamos casados a sete anos, temos três filhas, eu faço o jantar, lavo a roupa e ela lava os pratos, quando não está de TPM.
Hoje eu sei que namorei a todas essas mulheres somente para poder saber como se deve amar minha esposa. Amei pessoas inesquecíveis. Morri de amor por quem não valia a pena. Com a Carina descobri o amor e as filhas. Ver uma filha nascer é a maior sensação que conheço. Muita coisa foi diferente do que sonhei, muito do que nunca sonhei aconteceu. Só de vez em quando, sonho um pouquinho: imagino como as minhas filhas irão se casar. Que vão encontrar um príncipe, que serão felizes, que terão um castelo e vou defendê-las dos dragões safados.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A aposta certeira!



 Luiz Sanches

Dona Carmem, quarentona, mãe de duas pestes irremediáveis (que ao lado dela comportam-se como os melhores filhos do mundo), casada com o João Gilberto, é super religiosa. Nem se imagina saindo de casa sem rezar, por mais que a pressa insista em atrapalhar. Trabalhadora, costura para fora e produz vestidos deslumbrantes.
Devota agradecida de um sem número de santos, espera por um mundo melhor, sem violência, que perdoa, com mais caridade, pessoas discretas, companheiras, verdadeiras e seguidores fieis a Deus. Acha que este mundo não demora a chegar. Seus pais infundiram na filha o sonhar com este mundo e para seguir tradição, Dona Carmem também insere tais esperanças nos filhos que são irremediáveis, mas ela não sabe disso. Acha que o mundo que espera ver é o que os filhos irão desfrutar, no máximo, seus netos. "Deus há de permitir", sempre comenta.
Dona Carmem precisou sair um dia desses. Era o dia da aposta na loteria! Iria ganhar a vida, com certeza, pois sonhara os números da sorte grande: não tinha como perder! Os santos estavam inclinados a seu favor, afinal ela foi sempre uma mulher de exemplo e respeito. Merece a bolada para gastar com suas sonhadas viagens. Os números? Sabe de cabeça: 10, 15, 18, 26, 41 e 50. Ela vive em cidade do interior, daquelas que todo mundo conhece todo mundo e é quase impossível sair sem encontrar alguém na rua e hoje não foi diferente; logo ao sair encontra uma amiga e não perde a chance de contar o caso que leu no jornal matinal: bandido esfaqueia rapaz com 26 facadas para roubar tênis. "Um horror, acredita minha filha?" - relata ainda surpreendida pela notícia e conta exatamente como foi o caso. Terminado o caso, continua o caminho rumo à lotérica, quando se depara com o Sebastião, que finge não a ver e some logo ao dobrar a esquina. Dona Carmem logo fala consigo mesma: "safado, cachorro! Fez aquela porcaria de serviço lá em casa, me cobrou R$ 50,00 e não vai consertar! Vai morrer é no fogo do inferno, cretino!".
Na andança, se depara com um mendigo que a solicita uma moeda de R$0,10, mas este recebe um sonoro "vai trabalhar vagabundo".
Rumo à velha lotérica, se encontra com a Aparecida, solteira, coitada, mas que anda dando uns amassos no padeiro da padaria da esquina, que é casado. Dona Carmem não perde a chance de dizer o que é correto através de uma indireta, quem sabe a Aparecida desconfia: "posso encomendar uns 15 pãezinhos lá na sua casa Aparecida?", e segue viagem com um sorriso meia boca e nariz empinado.
Avista a loteria: é chegada a grande hora! Eram 18:00, quase se fechando e lá dentro estava o Custódio, antigo amigo da família, que se alegra ao vê-la e pergunta sobre a "vaca atolada" que a Dona Carmem cozinhou a um ano atrás. Custódio está desempregado, com despesas e relembrou a comida porque na sorte a Dona Carmem o convidava para  jantar.
-"Oh Custódio não estamos mais fazendo janta lá em casa." Mentira. Não queria a presença de um oportunista.
Então, fez o jogo! Saiu feliz da vida na certeza indiscutível da vitória. Passados os dias saiu o resultado da loteria e Dona Carmem não acertou um número sequer. Perplexa, discutia com os santos em suas orações:
-Meu santinho, porque eu não ganhei? Sou a pessoa mais bondosa dessa cidade! Se os números não eram da loteria, então que sinal era esse?

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Manual de utilização da Mulher®



Luiz Sanches

    Somos da indústria Pais e Amigos Ltda. e estamos felizes pela sua nova aquisição: Mulher®.
    A forma mais comum de ligar Mulher® é com afeto e palavras doces. Para ligar remotamente utilize cartas e telefonemas criativos. Se o sistema falhar, pedimos que tenha paciência e tente novamente mais tarde. Há modelos de Mulher® com esse defeito, por isso seja paciente.
    Existem atualmente várias versões disponíveis de Mulher®. Em caso de dúvida favor consultar a versão utilizando um beijo ardente. Você também pode atualizar para uma nova versão automaticamente usando palavras mágicas, simples e sinceras. Vamos observar as versões disponíveis:

    Versão "Amizade colorida": Esta é a versão mais simples e que permite menores recursos, mas nem por isso você deixará de desfrutar de tudo o que esta versão lhe permite descobrir.
    Versão "Namoro": Esta é uma versão de demonstração avançada que lhe permite descobrir que Mulher® não é simplesmente um objeto.
    Versão "Grávida": Nesta versão a atenção da Mulher® não será toda sua, mas trate de usufruir da Mulher® com toda a sua atenção.
    Versão "Mulher® da sua vida": Esta é a versão que exige maiores cuidados. Pedimos que você cuide bem da Mulher® para evitar perdas e roubos. Esta não é uma versão que se atualiza facilmente, mas é com certeza a mais prazerosa de todas. É uma versão fabricada com exclusividade.

Modo de uso
    Coloque a Mulher® em Stand By pela manhã, quando ela ainda dorme, com um beijo. Enquanto o sistema carrega, pode servir café da manhã na cama. Para acelerar o carregamento do sistema de Mulher®, diga que a ama. Após o sistema em pleno funcionamento, você pode usufruir de vários programas já instalados e outros que podem ser instalados com muita facilidade, como paquerar no parque, sair a noite, ir a cinema, dar e receber carinho especial e tantos outros.

Acessórios especiais
    Dispomos de inúmeros acessórios para incrementar a sua Mulher®, como brincos, colares, pulseiras e outros itens. Você não precisa comprar de nossa revenda autorizada unicamente em dias festivos e aniversários, somente solicitamos que compre estes acessórios quando for da sua vontade presentear. Assim agrega-se um valor muito superior.
    Acessório bolsa®: aumenta a capacidade de armazenamento da Mulher®. Devido ao crescente avanço tecnológico, você deve adquirir bolsas® cada vez maiores, o que não significa que haverá maior organização.
    Acessório Livro®: aumenta a sua capacidade de raciocínio e interação com você.
    Acessório Roupa Intima®: aumenta a felicidade de vocês dois.
    Atenção: não recomendamos a utilização do acessório Cartão de Credito ou similares em Mulher®, bem como camisas de time que Mulher® não torce.

Recomendações
    Você deve guardar Mulher® em local molhado e quente, como o coração.
    Evite locais sujos como bares. Também pode ser levada para jantar fora, o que garante o aumento de sua vida útil.
    Ao colocar a pilha, observe a posição e local corretos para não provocar um curto-circuito que pode durar até uma semana.
    Você logo irá notar que Mulher® não dispõe da função deletar memórias. Recomendamos neste caso que somente armazene em Mulher® boas memórias.
    Evite gritos, puxões, movimentos bruscos e palavrões, pois Mulher® é muito sensível.
    Não use álcool para limpá-la. Prefira flores e similares.

Defeitos conhecidos
    TPM: este é um defeito conhecido que ainda não possui solução. Se estiver com problemas, solicitamos que ligue para o nosso suporte técnico. Os nossos consultores ficarão imensamente felizes em enviar ao senhor chocolates, óleos de massagem e convites para locais calmos para entregar-los a Mulher®.
    Erro de crise emocional: este é um defeito frequentemente reportado por vários usuários e que independe de sua ação. Recomendamos utilizar ombro amigo e deixar a Mulher® ter um tempo, já que dispõe de sistema auto-regulador.
    Carência: não há a necessidade de ligar para o suporte técnico, já que este é um defeito que só você pode resolver.

    Em caso de defeitos mais graves, nunca tente abri-la e conserta-la ao seu modo, o que poderá aumentar mais ainda o problema. Recomendamos aceitá-la como está, já que vem de fábrica com um sistema de auto-modificação interna. Solicitamos a você que converse para auxiliar que este sistema funcione corretamente.

    Em caso de dúvidas, não se preocupe. Apesar da Mulher® não ser um produto novo, sempre há muito a se descobrir e se admirar.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Pedro, o bêbado sem vida



Luiz Sanches

Pedro é um resto de homem, jogado fora em qualquer boteco "copo sujo" que o engula. Ele não é um homem de contar os seus problemas a qualquer um. Prefere engolir a dor, abrir um sorriso maroto como se nada estivesse acontecendo, acorrentar a emoção que insistir em se soltar e enxaguá-la no álcool. Passa a noite sentando na mesma cadeira, na mesma mesa, no mesmo bar, hora papeando conversa chata com os outros solitários de bebedeira, hora delirando sobre o efeito do álcool, hora vendo televisão num canal que deseja mudar, hora debruçado na mesa, resolvendo se pede outra cerveja ou dar-se por conta que há chegado a hora de voltar para casa destrambelhada, que a tempos não sabe o que é uma arrumação.

Pedro foi mandado embora do trabalho, após muito custo, pois vivia sendo afastado por psicólogos devido à depressão e bebedeira. Trabalhava no escritório de advocacia de um amigo de infância, que muito suportou a embriagues do amigo. Mas paciência tem fim. Pedro entrou de vez no círculo vicioso da bebida após a separação com Irinês, que fugiu com outro homem, a uns dois anos. De lá para cá, Pedro consome a bebida que o consome. Pedro está cadavérico, abatido, guerreia contra a vida sem forças para lutar, afoga-se nos copos noite adentro num bar mal cheiroso, sujo e quente. Está é sua casa, ou sua cova, tanto faz... Fica lá escondido em meio às baratas.

Numa dessas semanas o Pedro some do bar. "Será que está passando mal, tem algum problema?" Os colegas de bar foram ver o que se passava. Chegando lá a casa estava varrida por fora. Não havia nenhuma folha de árvore na rua vinda da casa do Pedro, que por sinal estava podada. O portão, velhinho coitado, permanecia com a sua corrosão pelo tempo, mas foi pintado. Dava para perceber que foi pintado as presas. Bateram na casa. "Será que o Pedro morreu e alugaram a casa?" -questionaram-se todos. Pedro grita de lá de dentro: "quem é?".

-Oh Pedro "é nois". "Ta" aqui o Batista e eu, "cê" não apareceu no bar essa semana, "tamo" querendo saber o que aconteceu!

-"Perae" - gritou o Pedro de lá de dentro. Certo que todos esperavam que o Pedro gritasse algo rotineiro como "E aí Batista, "qualé" Gonzaga?". Aguardaram. Pedro abre o portão com cara de assustado, fitando com presa quem estava na rua.

-E aí Pedrão, não vai convidar para entrar não? -Fala o Batista entrando rápido, antes que o Pedro pudesse detê-lo. Na verdade o Batista foi experto para saber logo se o Pedro estava armando uma festa e não os convidou. Entrou e se espantou. A grama, cortada. A parte da frente da casa, meio pintada e com a tinta lá para pintar o resto. Da porta da frente, de vidro, era possível ver a casa arrumada e com um jarro de flores na mesa.

-E aí Pedro? -Batista pergunta sem olhar o rosto do Pedro, ainda admirando a arrumação inesperada da casa que já foi palco de várias noitadas - viemos de chamar para tomar uma.

-Ah... olha.. oh Batista... oh Gonzaga... oh gente, vai dar não. "Tô" arrumando "umas coisa" aê e não vai dar não. Fica para a próxima "tá"? -Lá ia empurrando o Batista para fora e fechando a porta, quando o Gonzaga o pega pelo braço.

-Pedro, o que que "tá" acontecendo?

-Nada não gente, nada não. - fala de cabeça baixa e já nervoso.

Depois de insistirem, e bêbados são insistentes, Pedro pede segredo e revela toda a verdade. Sua ex-esposa tinha ligado falando que não deu certo com o homem que fugiu e pediu perdão. Falou que voltaria para os seus braços em uma semana. Pedro a perdoou. Comprou roupas novas, arrumou a casa. Inventou um jantar, já que não sabe cozinhar. Certo que os colegas foram expulsos a força da casa do Pedro, pois estavam caçoando-o energicamente. Nem quis saber. Só queria largar a bebida, o cigarro e o bar copo sujo, para viver novamente com a sua Irinês. Sua vida se transformou. Vai até procurar emprego.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Paulinho, o distraído



Luiz Sanches

Eu namoro a Regina, que só gravei o seu nome após uma longa discussão para convencê-la que a chamei de Renata por engano, por ser eu muito distraído. Quase a discussão não se estende mais, pois por distração ia lhe perguntei por que estava morena no segundo encontro, já que era loira no primeiro. 

A patrícia, ops, me engano, a Regina, aceitou que eu fosse ao trabalho do pai dela para conhecê-lo pessoalmente. Li, certa vez, que seria interessante ao se conhecer uma pessoa da qual queremos prestigiar que compremos algo que ela venda. Como lá é um consultório médico, aproveitei para marcar uma consulta. Assim, prestigio o Seu Alceu pagando por uma consulta, o conheço pessoalmente e mais: trato com ele o meu problema de ejaculação precoce! Bom, liguei mais cedo para ele para informar que iria conhecê-lo e a sua secretária prontamente me atendeu, com uma voz maravilhosa. Imagino que seja linda e quase lhe dei uma cantada pelo telefone, quando me lembrei que já tinha namorada. Ufa! Quase me dou mal!

Estava cansado, porque eu me enganei achando que o bairro do trabalho dele era visinho ao meu. Cheguei cedo, queria ter a certeza que tinha marcado a consulta para as dezoito horas. Eram umas duas horas... ou dezesseis... por aí... Um homem atendia no balcão. Perguntei-lhe pela secretária que me atendera no telefone e ele me respondeu que só ele trabalhava lá de secretário. Gente, eu juro que a voz no telefone era de mulher! Mas tudo bem. Era terça-feira e enquanto aguardava, via o Faustão na televisão, mas alguma coisa me dizia que algo estava errado! O Faustão não tinha morrido? - "Paulo Silveira da Silva Silva", gritou o secretário, após a saída de uma paciente do consultório. Tinha um Silva a mais no meu nome, será que ele se enganou? Entro no consultório. Como poderia começar a conversa? Dizendo "olá meu querido sogrão!"? Preferi fazer-lhe uma surpresa; consultaria primeiro e me apresentaria depois. Assim ficava mais fácil para pedir que não se zangasse por eu me esquecer de trazer o dinheiro para pagar a consulta.

-Entre senhora, pode se sentar. - "Senhora", disse ele? Como assim?
-Desculpe doutor, o senhor se distraiu, sou homem e muito por sinal, já fiquei com mais de dez mulheres em uma só noite, tudo bem que umas se repetiram, mas eu sou muito homem! -Por um segundo me veio à cabeça: o que estou dizendo para o pai da minha namorada?
-Oh, bom, desculpe, arrr... Senhor... Paulo? Paulo Silveira da Silva Silva? -Olhou o doutor o prontuário com a mão trêmula e a testa franzida. - Desculpe-me senhor, é que sempre consulto mulheres. Peço perdão. - Continuou, quase sussurrando.
-Como assim atende somente mulheres? Eu vim tratar de... do que era mesmo?
-Sim, só atendo mulheres, pois sou ginecologista.
Tive que pensar rápido! Como fui distraído! Marquei a consulta, mas não perguntei a especialização dele?
-Na verdade doutor, eu marquei uma consulta com o senhor porque eu queria conhecê-lo pessoalmente. Sou o namorado da sua filha.
-Você? Namorado da minha filha? - Respondeu quase como um cão feroz. - Seu tarado, maluco!
-Desculpe doutor, ela também quis, eu não insisti! - Estava sem entender nada!
-Como assim??? Vou chamar a polícia! Minha filha só tem 10 anos! Seu Alceu, venha cá imediatamente.
-Seu Alceu, como assim? O doutor não é o Seu Alceu?
-Não, sou o Doutor Epaminondas... Seu Alceu é este aí - E apontava para o porteiro.
-Seu Alceuuuu!!! -Respondi logo de braços abertos - Eu sou o... que mesmo? Ah é... Sou o namorado da sua filha, vim te conhecer.
-Minha filha disse que você viria hoje para me conhecer. Ela não te disse que eu sou o porteiro?
-Ela disse? Respondi imediatamente. E continuando falei mais: - Ela não falou nada! Que vergonha que passei! Isso pra mim é um absurdo! Eu não posso aceitar namorar uma mulher tão distraída que não pode dizer-me que o pai é o porteiro. Quer saber? Se quiser, namore você com ela, porque eu não quero mais! - E saí imediatamente dali.

sábado, 14 de janeiro de 2012

O Relógio


Luiz Sanches

Para cada ano de vida a mais que tenho
cada ano de vida a menos tenho
O relógio tal martelada não se importa
em decretar a morte do último segundo

Se não entro no seu passo
continuo sendo arrastado sem perceber
pelo ponteiro que me aponta.
Se não ligo e o desligo, quando me ligo,
percebo o quanto estava desligado

O tempo não tem inicio nem fim,
mas quando termina dá uma vontade de voltar...
Posso até fingir que não o vejo passar e ser jovem
ou acrescentar anos que nem os possuo
mas ele vai me marcar com tantas horas, dias, anos...

Posso tapar os ouvidos para o relógio da igreja,
para o relógio pregado na parede que grita de noite
Posso até colocar em extinção aos cucos.
Mas um dia o meu relógio irá parar quando
o meu tique-taque parar de bombear

As vezes o relógio toca no meio da madrugada
vou atender para ver o que é
e ele me diz: tua vida é uma contagem regressiva
vive agora que amanhã a esta hora
sabe-se lá se dá para viver até de manhã

Aí deixei de atrasar o relógio
para ter um tempo a mais: pouco adianta!
Nem mesmo o adianto para não atrasar.
Não adianta mesmo!

Acho que o melhor é viver
não importa a década que me faz decadente
não importa o minuto que computo
não importa o segundo nem o terceiro

O que me importa mesmo é este agora...
é, não... desculpe. O que me importa mesmo
é este agora... Ops, desculpe mais uma vez...
o que me importa mesmo é este agora.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Seu Ernestinho, o jogador de futebol


Luiz Sanches

Seu Ernestinho, casado, quarenta e seis anos, cinco filhas, manca de uma perna e usa bengala desde jovem, vítima de acidente de carro, correndo atrás da bola que lhe escapara, nas quartas de final do campeonato do futebol. Por esse motivo, nunca pôde ganhar o campeonato.
É vidrado por futebol, vê de pé na televisão o jogo e quando o jogador dá o chute rumo ao gol, seu Ernestinho chuta junto, o ar, e por vezes cai no chão; chuta com a perna boa e se apoia na ruim. Dona Sintia bem que faz suas recomendações ao aficionado torcedor, que após a queda exclama no chão o grito de gol - quer mesmo é festejar.
Seu Ernestinho é contador, mas sonhava em ser jogador de futebol, impedido pelo acidente de carro. Tentou inutilmente ter um filho jogador, mas desistiu na quinta filha. Encaminhou um sobrinho, que virou médico. Tem a casula que está enrolada com um rapaz aí que torce pelo mesmo time do Seu Ernestinho: o orgulho do futuro sogrão!
Seu Ernestinho tem duas vidas: o antes e o depois do acidente. Antes da tragédia, jogava bem, era um jogador exímio. Necessitava de mais treino, mesmo assim, se destacava no clube. Chegou a jogar com o Pelé e driblá-lo. Seu Ernestinho zanga-se se alguém da família disser que aquele é outro Pelé, um qualquer. Fez o que Neymar nem sonha em realizar: pisou na bola quase no gol e caiu, a bola rolou... E gol!
Quando começa um jogo do Brasil, sempre diz com um sorriso escancarado: -"eu poderia ter jogado na seleção! Em 79, na grande área, passei por quatro e mais o goleiro e sozinho fiz o gol! Ah moleque! Pro papaizão todo goleiro virava frangueiro! Era pá, pum, vinha de cá, depois tum e gol!" - dizia em pé, chutando e demonstrando como foi a jogada e a filha Marta (nome em homenagem a jogadora de futebol) o alertando de lá da cozinha que poderia sofrer uma queda. Lógico que seu Ernestinho continuava encenando seus passes e dribles. Detestava que não lhe confiassem que poderia manter-se em pé ou que lhe ajudassem a subir uma escada ou degrau: tinha a plena certeza que até poderia jogar novamente! Por isso, ao passar pela molecada na rua jogando bola, pedia para ficar na "de fora". Os garotos se entreolhavam sem saber o que falar e permitiam que ficasse ali esperando sua vez, mas ao termino da partida, todos caçavam o seu canto. Hora diziam que acabou a partida, que tinham outro compromisso, ou era a decisão de qualquer campeonato, sei lá, só sei que Seu Ernestinho nunca jogava. Houve a vez que um dos garotos ficou no campo com a bola depois da partida. Seu Ernestinho com um sorriso no rosto jogou a bengala de lado, se aproximou mancando com um grande sorriso, muita esperança e perguntou quase cantarolando: -"e aí garoto, vamos jogar só nós dois?" O garoto disse que a bola não era dele e correu para entregar a bola a outro, que ficou surpreendido, mas a levou.
Certo dia um garoto qualquer da plateia difamou o Seu Ernestinho no Facebook: "ele acha que vai jogar críquete com aquela bengala?", " deixem ele jogar e será uma palhaçada", "que se jogar todo mundo vai rir dele", etc. A turma resolveu chamar o Seu Ernestinho para jogar. Levaram máquinas de filmar para colocar no YouTube os tombos do homem manco. Suas filhas a todo custo o impediam de ir ao jogo e lá foi ele quando elas se distraíram. Ter sido chamado fazia o coração acelerar, estava de novo feliz e muito feliz. Procurou não mancar na entrada do campo, mesmo com a emoção lhe tremendo as pernas, só não conseguiu segurar a lágrima que escapuliu dos olhos. Era o seu momento de glória, sem nem o jogo começar. Nada foi mais esperado. Uma das filhas chegou aos prantos e da plateia pedia ao pai para abandonar o campo, quando a bola chegou pela primeira vez aos pés do pai. Ele se segurou na perna ruim e bum... com a boa desferiu um chute tão forte que foi gol do meio de campo. Foi silêncio imediato da plateia, seguido de alvoroço. Seu Ernestinho jogou um bolão. Não conseguia correr, mas driblava, passava e fazia gol. Aguentou com dor os 90 minutos. A plateia nunca curtiu tanto, o carregaram, a família se surpreendeu e não o vê mais como um inválido, ficou famoso no YouTube e fez entrevistas na televisão. Conheceu o Pelé, que confirmou ter jogado quando jovem com ele, para surpresa da família.
Hoje Seu Ernesto joga poucas vezes, trabalhou como juiz de futebol e ganhou o sonhado campeonato, como técnico do time.
Quanto ao garoto que o ridicularizou pelo Facebook, agora conta as histórias do Seu Ernestinho, "que jogou com o Pelé", "fez o gol sozinho contra quatro e o goleiro": na verdade, o garoto é o próprio Seu Ernestinho, que fez um perfil falso e enganou todo mundo.